Você teria coragem de entrar em uma casa onde a música pode matar? 💀🎶
Larissa Andrade é uma jornalista teimosa que vive para expor segredos. Após ser desacreditada por seus editores, ela aposta tudo na investigação de um caso arquivado há 15 anos: a morte bizarra do músico Heitor Benevides na infame Casa 92.
Mas a casa não está vazia. Ela respira, observa e guarda um mal que o tempo não conseguiu apagar.
Logo no primeiro dia, ela dá de cara com Miguel, um ex-policial enigmático e irritantemente protetor, que carrega as cicatrizes da investigação original. Ele sabe dos perigos que se escondem nas sombras daquele lugar e fará de tudo para mantê-la afastada.
O que eles não esperavam era que, ao desenterrarem o passado, uma ameaça muito real e presente viria à tona. Agora, eles não são mais apenas a jornalista curiosa e o policial aposentado. São alvos.
Forçados a trabalhar juntos, essa dupla improvável mergulha em um quebra-cabeça de fitas antigas, partituras que parecem códigos e uma conspiração que silencia quem chega perto demais da verdade. A tensão entre eles é tão perigosa quanto o mistério que os cerca.
Será que eles conseguirão resolver o enigma antes de se tornarem a próxima nota silenciosa dessa sinfonia mortal?
Prepare-se para um thriller cheio de suspense, diálogos afiados e uma química de tirar o fôlego. Novos capítulos toda semana! Adicione à sua biblioteca e não perca nenhuma pista.
Capítulo 1 – A noite do crime
A chuva caía grossa sobre Curitiba naquela madrugada de 2008, como se o céu tivesse decidido se rasgar de uma vez. As ruas do bairro Mercês refletiam as luzes mortiças dos postes, transformando poças em espelhos trêmulos de amarelo e cinza. A Rua Fernando Simas, estreita e silenciosa, parecia mais antiga do que era, com o asfalto brilhando sob a água e o vento frio que cortava entre as árvores retorcidas.
O casarão, de fachada austera e pintura desbotada, impõe-se como uma sombra entre as demais residências. O portão de ferro trabalhado range com o vento, e o beiral despeja filetes contínuos de água que pingam no jardim abandonado. Dentro, um som persiste, abafado pelas paredes grossas: um piano. As notas são hesitantes, quase titubeantes, como se o músico estivesse testando algo, buscando a combinação certa.
Na sala principal, iluminada apenas pelo abajur de tecido gasto, o professor Heitor Benevides está curvado sobre o piano. O corpo alto e já encurvado pelo peso da idade se move com esforço. Os óculos escorrem pelo nariz suado, e ele os empurra nervosamente enquanto tenta acompanhar a partitura rabiscada diante de si. O som do relógio de parede, atrás dele, marca as horas com uma regularidade quase agressiva.
Heitor para. Passa as mãos trêmulas pelo rosto. A partitura está manchada de tinta, e algumas frases escritas à mão parecem ter sido riscadas com raiva. Ele murmura sozinho, em voz baixa:
— Não… não é assim… preciso terminar… preciso terminar…
A chuva intensifica-se. O som do vento entra pelas frestas das janelas mal vedadas, fazendo as cortinas pesadas balançarem. Um cheiro de madeira úmida mistura-se ao de cera no chão, criando um ambiente sufocante.
Mais uma vez Heitor para. Coloca as mãos no rosto se sentindo exausto.
De repente, uma nota mais grave ecoa do piano, dissonante, como se as teclas tivessem sido pressionadas com força demais. Heitor leva um susto, vira-se para trás, mas não há ninguém. Apenas o tique-taque do relógio. Ele tenta se recompor, ajeita a partitura, mas sua respiração está pesada, descompassada.
Então acontece. Um golpe seco. O corpo dele se desequilibra, o banco tomba com estrondo, e o professor cai no chão. O sangue escorre lentamente, formando um desenho irregular que se espalha pelo chão encerado. Na mão direita, ainda presa pelos dedos rígidos, a partitura, agora suja de vermelho. No papel, entre borrões de tinta e sangue, uma frase é quase ilegível: “O que começa com música, termina em silêncio.”
O ponteiro do relógio estanca. 3h17.
A casa mergulha em um silêncio absoluto.
***
Quinze anos depois, a Rua Fernando Simas parecia presa no tempo. A garoa, insistente como sempre, embaçava a visão de quem passava. O frio não era cortante, mas entrava pelas frestas das roupas, instalando-se nos ossos.
Foi nesse cenário que Larissa Andrade parou diante do portão da Casa 92. Segurava o guarda-chuva com uma mão e o celular com a outra. Estava impaciente. A blusa de lã já colava nos ombros e o cabelo preso em coque bagunçado escapava em mechas úmidas. Era bonita sem esforço — com olhos que pareciam sempre prontos pra uma ironia, sobrancelhas arqueadas como vírgulas eternamente céticas. Jornalista freelancer, especialista em fuçar onde ninguém mais queria, e dona de um sarcasmo afiado o bastante pra cortar vidro. Larissa suspirou, ajeitando a mochila no ombro e encarando a fachada da casa com o tipo de desafio que só os teimosos sustentam.
“Então é aqui”, pensou.
A construção estava ainda mais decadente do que lembrava das fotos de arquivo: janelas escurecidas, tinta descascada em tons de cinza e um portão de ferro que parecia à beira de desabar. O número 92 ainda resistia, torto, preso por um único prego enferrujado.
Larissa ajeitou os óculos no nariz, bateu uma foto rápida da fachada, o clique ecoou mais alto do que deveria, como se o som tivesse vida própria naquela rua quase deserta. Depois guardou o celular na mochila e passou pelo portão.
— Ótimo, Andrade. — murmurou para si mesma irônica. — Agora é oficial: jornalista maluca tira foto de casa assombrada. Isso vai render prêmios.
Mas, por trás da máscara de sarcasmo, um fio de insegurança latejava. Ainda lembrava das risadas abafadas na redação, anos atrás, quando sugeriu reabrir a pauta da morte de Heitor Benevides. “Caso velho, sem apelo. Perda de tempo”, disseram os editores, e pelos corredores, o que ouviu, na verdade, foi: “ninguém leva você a sério”.
E mesmo depois de sair do jornal, de se tornar freelancer, de tentar construir algo próprio, aquela frase não a abandonava. Era isso que a trazia ali, naquela noite fria: a necessidade de provar — para os outros, mas principalmente para si mesma — que ainda podia dar voz a histórias que todos preferiam enterrar.
A ponta dos dedos começou a tamborilar contra a haste do guarda-chuva. Era um gesto automático, fruto da impaciência que sempre a traía. O vento soprou novamente, trazendo o rangido leve do portão de ferro. Um arrepio percorreu sua espinha.
Foi então que ouviu passos.
Não eram passos apressados, nem pesados. Larissa hesitou. O som se aproximou até que uma sombra se projetou sobre ela.
Larissa se virou lentamente.
Encostado no portão da Casa 92, estava um homem de jaqueta de couro surrada, o capuz de moletom sobre a cabeça, a barba por fazer e um olhar sombrio de quem já enterrou mais segredos do que gostaria. Ex-policial, cético por natureza, e irritantemente calmo — o que só fazia Larissa ferver por dentro.
Miguel Vasconcellos.
Larissa sentiu a mandíbula tensionar.
— Ótimo. — disse, arqueando uma sobrancelha. — Eu devia ter imaginado que você ia aparecer.
Ele a encarou.
— Você não aprende, não é? — disse enfim, a voz grave, cansada. — Sempre correndo atrás de coisas que deveriam ficar enterradas.
Larissa soltou uma risada curta.
— Olha quem fala. O policial aposentado que nunca largou o vício de bisbilhotar.
Miguel manteve o olhar firme.
A garoa engrossou, batendo contra o ferro do portão com estalos regulares. Eles correram para a entrada da casa. O silêncio entre os dois era carregado de lembranças não ditas, de provocações antigas que pareciam parte de uma coreografia ensaiada.
Larissa fechou o guarda-chuva com impaciência.
— Então, Miguel… vai me dizer que está aqui só por uma coincidência?
Ele demorou alguns segundos antes de responder.
— Vim porque conheço a sua teimosia. E porque sei como essa casa engole quem entra sem saber o que procura.
Ela revirou os olhos, mas o gesto foi mais para esconder um incômodo do que por convicção.
— Obrigada pela poesia de filme B, mas eu não preciso de babá.
Miguel arqueou uma sobrancelha, tirou as mãos dos bolsos e, abrindo a porta, entrou, o som das botas ecoando no piso molhado.
— Eu já estive aqui antes, Larissa. — disse em tom baixo. — E não foi nada bom.
Por um instante, ela notou algo diferente no rosto dele. Algo como uma lembrança. E, junto dela, uma sombra de arrependimento.
O vento soprou outra vez. O portão rangeu, como se reagisse às palavras.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Larissa entrando atrás dele.
O maxilar de Miguel se contraiu, e as mãos se fecharam nos bolsos como se tentassem conter uma memória. Quando falou, a voz saiu grave, rouca:
— 2008. Eu era um dos primeiros na cena.
A garoa parecia ter parado de repente, como se a rua também quisesse escutar.
— O professor Benevides? — Larissa perguntou, o interesse jornalístico tomando a frente. — Você viu o corpo?
Miguel fechou os olhos por um instante, como se a pergunta o tivesse puxado de volta àquela madrugada.
***
A lembrança veio como um soco. O som da sirene ainda ecoava em seus ouvidos. O carro da polícia parando diante da Casa 92. A chuva insistente batendo no para-brisa. Seu primeiro homicídio.
Miguel atravessando o portão enferrujado, ainda jovem, farda impecável, mas com as mãos suadas. A porta estava entreaberta, e a madeira rangendo evidenciando o silêncio.
Na sala, o corpo do professor de bruços no chão. O crânio destruído, o sangue espalhado em desenhos macabros. O relógio parado em um instante exato. E a partitura… aquela frase borrada.
Ele lembrava de como ficou paralisado por segundos, tempo suficiente para o sargento ao lado resmungar: “Mexa-se, Vasconcellos.”
Mas Miguel nunca esqueceu. O cheiro. O silêncio pesado. A sensação absurda de que a casa observava.
***
De volta ao presente, respirou fundo tentando afastar a lembrança, mas Larissa notou.
Ela inclinou a cabeça, estudando-o com atenção.
— Você ainda sonha com isso. — disse em tom baixo.
Miguel desviou o olhar.
— Alguns lugares não deixam você ir embora.
Larissa sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos.
— Para quem jura ter superado o passado, você parece bem preso a ele.
Ele a encarou, os olhos endurecidos.
— E você? — rebateu. — Quantas vezes perdeu empregos porque não sabia a hora de largar uma história?
As palavras atingiram-na como um golpe. Larissa sentiu o estômago revirar, mas não deixou transparecer. Apenas ergueu o queixo, desafiadora.
— Tanto faz. — respondeu com firmeza. — Mas ao contrário de você, eu não fico me escondendo atrás de silêncios.
O vento soprou mais forte, fazendo o portão ranger novamente. O som ecoou pela rua deserta, como se fosse uma risada distante. Ambos se calaram por alguns segundos, os olhos presos no interior da casa.
***
A porta foi aberta, e o cheiro que escapou de dentro era uma mistura opressiva de mofo, poeira e algo indefinível, quase doce, que parecia colado às paredes. Larissa sentiu o estômago revirar.
O silêncio foi quebrado pelo som distante de um carro que passou rápido, e depois só restou o gotejar da chuva escorrendo pela calha enferrujada. O portão da casa rangeu outra vez, causando um arrepio em Larissa.
Ela prendeu o guarda-chuva na alça da mochila e a ajeitou nos ombros. O coração batia acelerado, mas seu rosto manteve a expressão firme de quem não recua.
Larissa deu apenas alguns passos para dentro. — “É o suficiente.” — pensou.
Miguel apenas observava cada gesto com a calma irritante de sempre.
— Você vai ficar aí parada? — perguntou, com um brilho nos olhas.
— Eu disse que vinha investigar. — respondeu, sem olhar para ele. — Não costumo voltar atrás.
Miguel suspirou.
— Teimosia mata, Andrade.
— Covardia também. — rebateu ela, quase sorrindo.
O olhar dele brilhou mais uma vez, uma faísca de respeito. Era esse embate, essa colisão constante, que tornava impossível para os dois ignorarem a presença um do outro.
Um vento mais frio atravessou a porta, levantando alguns papéis soltos pelo chão. O cheiro de mofo pareceu intensificar-se, misturando-se a algo metálico, como ferrugem ou sangue antigo. Larissa franziu o nariz, sentindo o estômago embrulhar. De repente ela vi algo.
— Você sentiu isso? — murmurou.
Miguel apenas assentiu, os olhos fixos na janela da sala ao lado.
— A casa não gosta de visitas.
Ela soltou uma risada curta, nervosa.
— Ótimo. Isso vai render uma ótima abertura para minha matéria.
Mas por dentro, o frio que percorria sua espinha não tinha nada de literário.
— Vou tirar umas fotos e vamos embora daqui. Ok? — falou ela, já com o celular em mãos.
Capítulo 2 – A Jornalista e o Ex-Policial
O som insistente das notificações que pipocavam no celular despertou Larissa antes mesmo que a claridade cinzenta da manhã atravessasse as cortinas finas de sua quitinete. O quarto estava confortável, apesar, do vento úmido que insistia percorrer Curitiba. Mesmo assim, puxou o cobertor até o rosto e se aninhou por mais alguns minutos.
Resmungou, esticando a mão para a cabeceira e agarrando o celular. A tela piscava com dezenas de mensagens acumuladas durante a madrugada. Sem óculos, os caracteres embaralhados pareciam ainda mais agressivos. Colocou-o no rosto e, aos poucos, as frases ganharam forma:
“Deixe a Casa 92 em paz.”
“Você não sabe com o que está mexendo.”
“Cuidado com o que procura.”
A cada leitura, uma pontada percorreu-lhe o estômago, mas a jornalista ergueu a sobrancelha e soltou um riso curto, quase debochado.
— Originalidade não é o forte de vocês, né? — murmurou para o quarto vazio, como se os remetentes anônimos pudessem ouvi-la.
O celular vibrava novamente. Outras mensagens. Algumas com símbolos desconexos, outras com ameaças veladas. Uma, em especial, fez sua mão suar: uma fotografia granulada de uma rua próximo a sua casa, tirada a noite.
O coração acelerou. Por instantes, a sensação de estar sendo vigiada a envolveu como uma rede invisível. Levantou-se instintivamente em direção à janela, onde a cortina leve estava entre aberta. Lá fora, apenas a manhã nublada, o céu de um cinza uniforme e a rua quase deserta.
“Respira, Andrade. É só mais um maluco atrás de atenção.”
Mesmo assim, o arrepio permaneceu.
Voltou para a lateral da cama e enfiou os pés nas pantufas. O chão de tacos brilhava, a cera recém-passada, dava ar de aconchego juntos com os tapetes espalhados pela quitinete de 35 metros quadrados. A cozinha era apenas uma bancada de azulejos brancos, onde repousava uma cafeteira elétrica manchada pelo uso. Preparou o café no automático, o cheiro forte logo invadindo o espaço estreito.
Sentou-se à mesa pequena, a caneca soltava vapor, aquecendo-lhe os dedos, mas não dissipava a sensação de frio que vinha de dentro. Enquanto tomava o primeiro gole, Larissa abriu o notebook. A tela iluminou-lhe o rosto cansado, destacando as olheiras marcadas de noites maldormidas.
A pasta de documentos sobre a Casa 92 estava aberta. Fotografias antigas do bairro Batel, recortes de jornal dos anos 2000, uma matéria amarelada sobre o professor Heitor Benevides. Ao lado, a matéria que ela mesma publicara dias antes, com direito a um título provocativo: “O silêncio da Casa 92: mito ou verdade esquecida?”
O artigo havia ganhado atenção nas redes, com comentários divididos entre descrença, curiosidade e insultos. Alguns leitores pediam que ela fosse “investigar de verdade”, outros a chamavam de sensacionalista barata. Parte dela se alimentava da polêmica, afinal, uma boa repercussão poderia ser o trampolim que precisava para provar ao editor que ainda tinha fôlego para grandes pautas.
Mas a outra parte — a que sentia o frio na barriga ao lembrar da fachada silenciosa — não conseguia ignorar a inquietação crescente.
“É só jornalismo investigativo, Larissa. Não é como se fantasmas existissem.”
Mesmo assim, voltou a lembrar do portão rangendo, do peso invisível que parecia cair sobre os ombros quando espiou o jardim tomado pelo mato. E da sensação de, estar sendo observada.
Bateu a caneca na mesa, decidida a afastar o pensamento.
— Coragem é só medo disfarçado de salto alto. — disse em voz alta, rindo sozinha, a voz ecoando pelo espaço vazio.
Era isso que sempre fazia: vestia o sarcasmo como armadura. Não podia se dar ao luxo de parecer frágil, não depois de tantas derrotas acumuladas na redação.
Enquanto ajeitava o coque bagunçado, o celular vibrou novamente sobre a mesa. Outra mensagem.
“Você já entrou. Agora não tem como sair.”
Larissa ficou imóvel. Sentiu o gosto do medo subir pela garganta. Preferiu ignorar. Apenas bloqueou o número e respirou fundo, tentando se convencer de que era alguém tentando brincar com seu medo.
Mas a convicção não veio.
Colocou um casaco grosso de botões grandes e com o notebook já dentro da mochila, pendurou-a no ombro. O relógio de parede marcava nove e pouco da manhã. O frio já havia se instalado na cidade, cortante e persistente. Trancou a porta atrás de si, lançando um último olhar ao corredor estreito de seu prédio. Teve a impressão de ouvir um estalo no fim do corredor — provavelmente um vizinho fechando a porta, talvez não.
Sacudiu a cabeça. Não ia deixar que paranoias lhe roubassem o foco.
Desceu os degraus rapidamente e, ao sair para a rua, a garoa fina a recebeu de novo. O vento carregava o cheiro de pão fresco de uma padaria próxima e o rumor distante dos passos no calçadão da Rua XV. Enfiou as mãos nos bolsos, sentindo a pele fria, e caminhou com passos firmes.
Hoje, precisava de mais do que coragem disfarçada. Precisava de provas.
***
O calçadão da Rua XV fervilhava, apesar da manhã fria. Vendedores ajeitavam caixas de flores em cores vivas, contrastando com o céu cinzento. O som dos passos apressados ecoava pelo mosaico de pedras portuguesas, misturado ao tilintar de xícaras que escapava dos cafés e padarias alinhados. Curitiba, em seus dias nublados, parecia sempre guardar um segredo nas entrelinhas do vento.
Larissa atravessou a rua com a mochila no ombro e a gola do casaco levantada contra o frio. Entrou em um café, um dos mais antigos da região, ao empurrar a porta, um sino tilintou acima dela. O cheiro denso de grãos recém-torrados a envolveu de imediato, quase como um abraço caloroso.
O espaço era pequeno, iluminado por lâmpadas amareladas que pendiam sobre as mesas de madeira riscada. As paredes exibiam fotografias em preto e branco de Curitiba dos anos 60, bondes passando pela mesma Rua XV, pessoas com guarda-chuvas abertos contra a chuva que nunca parecia cessar.
Larissa escolheu uma mesa próxima à janela, apoiando a mochila no chão. Tirou o laptop e abriu-o sobre a superfície da mesa. Pediu um capuccino ao garçom e, enquanto esperava, abriu um arquivo com o mapa antigo do bairro Batel, digitalizado a partir de um recorte amarelado. O cursor piscava diante de notas soltas, frases inacabadas.
O barulho das conversas ao redor formava um pano de fundo reconfortante. O cheiro do café, misturado ao doce da vitrine de pães, ajudava a manter o ritmo. Ainda assim, o peso das mensagens anônimas da manhã não se dissipava. A cada gole, sentia o calor da xícara contra as mãos, mas o frio dentro dela permanecia intacto.
“Vai ver é isso mesmo que eles querem: que eu sinta medo. Que eu recue.”
Não podia.
Lembrou-se do rosto do editor, na última reunião. O jeito dele de ajeitar os óculos antes de desferir a frase cortante: “Larissa, sua insistência em pautas de lenda urbana nos ridiculariza. Se quer respeito, entregue fatos, não mitos.”
Ela mordiscou a borda da xícara, os olhos ainda fixos no mapa.
— Pois então, senhor respeitável editor, vai ser aqui que eu vou encontrar os fatos. — murmurou, como quem sela um pacto silencioso consigo mesma.
De repente, alguém parou ao lado da mesa. Larissa ergueu os olhos e, antes mesmo de chegar o rosto, já sabia quem era. Aquele jeito de ocupar espaço sem pedir licença era inconfundível.
— Sempre ocupando mesas boas, não é? — disse Miguel, puxando a cadeira e sentando-se de frente para ela.
Larissa bufou, semicerrando os olhos.
— Você não conhece o conceito de pedir permissão, né?
Ele apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se levemente para frente. A jaqueta gasta exalava o cheiro de chuva e couro antigo.
— Achei que jornalistas adorassem visitas inesperadas.
— Só quando elas não vêm com cara de sermão. — rebateu, ajeitando o coque bagunçado como se isso pudesse lhe devolver o controle da cena.
O garçom chegou com outro capuccino, e Miguel fez sinal pedindo um café preto.
— Ainda toma café com açúcar demais? — perguntou, a voz baixa, quase distraída.
Larissa estreitou os olhos.
— Você anda catalogando meus hábitos por curiosidade ou isso é mania de ex-policial?
Ele sorriu de canto, sem pressa.
— Mania de quem presta atenção. Diferente de quem corre atrás de histórias maiores do que consegue segurar.
A provocação atingiu em cheio. Larissa pousou a xícara com mais força do que gostaria, fazendo o líquido escorrer pela borda.
— Você não tem o direito de se meter, Miguel. Não trabalha comigo. Não é meu chefe. Nem meu pai.
Ele não respondeu, apenas deixou a frase escorrer com calma:
— E mesmo assim, você sabe que eu estou certo.
O silêncio entre eles foi preenchido pelo barulho das conversas do café, pelo tilintar das xícaras e pelo rádio baixo tocando uma canção antiga de MPB. Larissa desviou o olhar para a rua, onde um artista de rua pintava caricaturas sob um grande guarda-sol vermelho.
“Ele sempre faz isso. Sempre me irritando com meia dúzia de palavras e essa… calma.” — pensou.
Bateu os dedos contra o teclado, mas não digitou nada.
— Se você veio até aqui só para me dizer que eu não sei o que estou fazendo, parabéns, recado dado. Agora pode voltar para o seu buraco. — disse, sem olhar para ele.
Miguel ignorou as palavras e, de dentro do bolso interno da jaqueta, retirou um envelope pardo, manchado de café em uma das bordas. Empurrou-o lentamente pela mesa até ela.
— Se acha que é só uma lenda urbana, talvez queira dar uma olhada nisso primeiro.
Larissa ergueu a sobrancelha, hesitante. O envelope parecia pesado, as bordas carcomidas pelo tempo. Passou o dedo pela superfície áspera, o coração acelerando sem motivo aparente.
— O que é isso?
— Provas. Ou, pelo menos, pedaços delas. Coisas que a perícia nunca concluiu. — respondeu Miguel, apoiando-se na cadeira como quem tinha todo o tempo do mundo.
Ela tentou disfarçar o impacto.
— E por que você tem isso, se não está mais na polícia?
Ele se limitou a soltar um riso curto, sem humor.
— Digamos que nem todo mundo é bom em descartar o passado.
Larissa ficou imóvel, os olhos fixos no envelope. Pela primeira vez, não tinha resposta imediata.
***
Larissa segurava o envelope pardo como se fosse algo vivo. O papel áspero arranhava a ponta dos dedos, e o simples fato de tocá-lo a fazia sentir-se cúmplice de alguma coisa. Uma parte dela queria rasgar o lacre e ver o conteúdo de imediato; a outra queria atirar aquilo de volta para Miguel e encerrar a conversa ali.
— Se isso for uma daquelas suas tentativas patéticas de me impressionar com segredos de corredor, já adianto: não estou interessada. — disse, mesmo enquanto a mão permanecia imóvel sobre o envelope.
Miguel arqueou a sobrancelha, aquele ar de calma que tanto a irritava.
— Se não estivesse interessada, já teria jogado fora.
Ela bufou, apoiando-se na cadeira.
— Você sempre teve esse dom de se achar mais esperto do que todo mundo.
— E você sempre teve o dom de enfiar a cara onde não devia, achando que é invencível. — rebateu, sem elevar o tom.
A frase a atingiu de forma inesperada. Por um instante, Larissa não respondeu. O capuccino esfriava diante dela, a espuma já desfeita. O café parecia perder o cheiro, como se o mundo ao redor tivesse ficado em suspenso.
— O que tem aí dentro, afinal? — perguntou, tocando novamente o envelope, agora com menos hesitação.
Miguel entrelaçou as mãos sobre a mesa, como se tivesse esperado exatamente essa pergunta.
— Fragmentos do caso Benevides. Fotografias que nunca chegaram a público, anotações da perícia que foram arquivadas cedo demais. Coisas que deveriam ter sido investigadas a fundo, mas que… convenientemente, não foram.
Larissa ergueu o olhar para ele, estreitando os olhos.
— E você simplesmente andou guardando tudo isso embaixo do travesseiro?
O canto da boca dele se curvou em um sorriso quase imperceptível.
— Não. Mas digamos que nunca consegui enterrar esse caso.
Ela respirou fundo. O sarcasmo, seu escudo habitual, falhou por um momento.
— Se for uma farsa… — começou, mas a voz falhou.
— Não é. — interrompeu Miguel, firme. — Eu estava lá, lembra? Fui um dos primeiros a entrar na Casa 92 naquela madrugada.
O silêncio que se instalou era denso. Larissa conhecia essa parte da história, ao menos em linhas gerais: Miguel, então jovem policial, havia se envolvido na investigação. E depois, poucos anos mais tarde, sua carreira havia se encerrado em circunstâncias nebulosas.
O garçom passou perto, deixando outro café para Miguel e recolhendo a xícara dela, já vazia. Larissa observou as mãos do homem, a forma como depositava a xícara na bandeja. Pequenos detalhes que serviam de distração, enquanto tentava decidir se abriria ou não aquele envelope.
Com um gesto rápido, rasgou a aba. O papel se partiu com um som seco que pareceu ecoar mais do que deveria. Dentro, havia uma série de folhas amareladas e três fotografias impressas em papel fosco.
Larissa puxou a primeira foto. A imagem mostrava uma parede da Casa 92, com uma rachadura irregular que descia desde a altura do teto até quase o rodapé. Ao redor da fenda, manchas escuras que a perícia havia registrado como infiltração. Mas ali, congelado no tempo, o detalhe saltava aos olhos: no canto inferior, marcas avermelhadas, secas, lembrando respingos de sangue.
— Isso… — ela murmurou, a voz engasgada. — Isso nunca saiu nos relatórios públicos.
— Porque foi considerado irrelevante. — respondeu Miguel. — Alegaram que o sangue poderia ser de algum acidente anterior, ou até de um animal. Mas a análise nunca foi concluída.
Larissa passou o dedo sobre a imagem, como se pudesse sentir a textura da parede através do papel. A rachadura parecia apontar para algo, quase como uma seta desenhada por acidente.
“Olhe além do óbvio.” — surgiu em sua mente.
Engoliu em seco, largando a foto sobre a mesa.
— E você traz isso para mim, por quê? Para me assustar?
Miguel respirou fundo, apoiando-se no encosto da cadeira e cruzando os braços sobre o peito.
— Porque sei que você não vai parar. Você é teimosa demais para isso. Então é melhor ter algumas informações do que andar às cegas.
Ela o encarou por longos segundos. Havia algo na voz dele, uma mistura de reprovação e preocupação, que quase a desarmava.
— Você não me conhece tão bem assim. — disse, mas a frase soou fraca até para os próprios ouvidos.
Ele riu baixo, amargo.
— Conheço o suficiente.
O silêncio entre os dois foi novamente preenchido pelos ruídos do café: o tilintar de colheres, o rangido das cadeiras, a música suave no rádio. Mas, entre eles, algo havia mudado. A ironia ainda estava ali, o sarcasmo que moldava cada palavra trocada, mas havia também uma linha invisível de cumplicidade. Como se, apesar das farpas, ambos soubessem que estavam presos ao mesmo enredo.
Larissa olhou novamente para a fotografia sobre a mesa. O detalhe da rachadura e das manchas não saía da cabeça. Havia algo ali, algo que pedia para ser descoberto.
Quando ergueu os olhos para Miguel, encontrou o olhar dele fixo nela, sério, inabalável.
Foi nesse instante que percebeu: quer quisesse ou não, estavam condenados a voltar juntos à Casa 92.
Capítulo 3 – Ecos da Casa
O relógio da igreja próxima havia acabado de marcar 22h45 quando Larissa e Miguel pararam diante do portão da Casa 92. O poste de luz mais próximo piscava em intervalos irregulares, criando um efeito de intermitência que mergulhava a fachada da casa em sombras alternadas. Parecia um jogo cruel: a cada fração de segundo, o lugar se tornava mais ameaçador, como se, entrar lá, fossem sugados sem passagem de volta.
O ar daquela noite estava especialmente gelado, cortante, como se cada rajada de vento viesse das entranhas da cidade. Larissa puxou o casaco grosso contra o peito, mas o tremor que a percorria vinha mais da ansiedade que insistia em escalar pela espinha.
— Sabe que isso é uma péssima ideia, não sabe? — disse Miguel, a voz baixa, enquanto verificava a lanterna.
Larissa arqueou a sobrancelha e deixou escapar um riso breve, carregado de sarcasmo.
— Você repete isso com tanta frequência que começo a achar que quer me convencer… ou, quem sabe, se convencer.
Ele a olhou por um instante, mas não respondeu. A luz intermitente do poste ressaltava os traços duros de seu rosto, as linhas de cansaço que carregava como cicatrizes de guerras pessoais.
Larissa tamborilava os dedos contra a capa do celular. Tentava disfarçar, mas a verdade é que seu coração batia rápido demais. Desde cedo, quando as mensagens anônimas pipocaram em sua tela, aquela sensação de estar sendo observada a acompanhava como uma sombra.
Miguel a observou por um instante. Nos olhos dela havia brilho, não apenas de desafio, mas de uma inquietação que se camuflava em ironia. Miguel conhecia bem esse tipo de armadura. Já tinha visto em colegas de farda, pessoas que usavam sarcasmo como último recurso para não deixar que o medo transparecesse.
O portão rangeu quando ele o empurrou. O som se espalhou pela rua silenciosa, um aviso incômodo que fez Larissa morder o lábio inferior, mesmo que não quisesse admitir o nervosismo.
— Ótimo, agora a vizinhança toda sabe que estamos aqui. — murmurou, estreitando os olhos.
— Relaxa. A vizinhança finge que esse lugar não existe. — respondeu Miguel, entrando primeiro, como se aquele detalhe fosse natural.
No jardim abandonado, galhos secos retorcidos, folhas acumuladas em camadas espessas e um cheiro de terra encharcada impregnava o ar. O vento fazia bater uma veneziana solta no segundo andar, criando um ritmo irregular, quase como uma respiração.
Larissa caminhava um passo atrás, tentando disfarçar que acompanhava o ritmo dele. Suas botas afundavam levemente no solo fofo.
— Se eu morrer de pneumonia por causa desta casa, vai ser a reportagem mais lida do ano. — disse, com um meio sorriso.
Miguel não conteve um suspiro.
— Você realmente não consegue ficar cinco minutos sem transformar tudo em manchete, consegue?
— E você realmente não consegue passar cinco minutos sem bancar o guardião carrancudo, consegue?
A troca era ácida, mas ambos sabiam que havia algo além das palavras. Era como se cada provocação fosse uma forma de não reconhecerem que estavam ali porque precisavam um do outro.
Ao chegarem à porta principal, Miguel iluminou a maçaneta enferrujada. O metal estava frio ao toque, e umidade escorria pelos vincos da madeira. Larissa estendeu a mão antes dele, segurando a maçaneta com determinação.
— Eu vou na frente. — disse, firme.
Ele hesitou por um instante, mas recuou meio passo.
Quando a porta finalmente se abriu, o mesmo cheiro que fez o estômago de Larissa revirar, da primeira vez que estiveram lá, voltou as suas narinas.
Miguel levantou a lanterna e projetou um facho de luz sobre o interior da sala. A visão que tinham formava sombras, criando figuras alongadas que pareciam se mover de forma autônoma.
Larissa inspirou fundo, soltou o ar devagar e, como se falasse para si mesma, murmurou:
— Que comece o espetáculo.
***
O primeiro passo dentro da Casa 92 foi como atravessar uma fronteira invisível. O ar mudou de imediato, mais frio, mais denso, carregado de umidade antiga. O cheiro de mofo impregnava as narinas, e havia também algo metálico, discreto, como ferrugem misturada ao pó. Larissa franziu o nariz e puxou o cachecol contra o rosto, mas isso pouco ajudou.
O facho da lanterna de Miguel varreu a sala principal, revelando móveis cobertos por lençóis encardidos, como vultos silenciosos de uma família há muito extinta. O carpete, outrora talvez vermelho ou azul, agora se confundia com o marrom do pó acumulado. As paredes exibiam manchas escuras que pareciam mapas de lugares inexistentes, bordas de umidade formando figuras grotescas.
— É… aconchegante. — murmurou Larissa, a ironia abafando o mal-estar. — Devia ser ótimo para festas temáticas.
Miguel continuou em silêncio, os olhos atentos, como se cada sombra fosse suspeita.
O piso de madeira rangia sob seus passos, protestando contra o peso depois de tantos anos de abandono. O som ecoava pelo teto alto, criando uma sensação incômoda de reverberação. Larissa, involuntariamente, olhou para cima. O lustre, coberto de teias de aranha, balançava levemente, embora não houvesse vento suficiente para tal.
— Isso não é normal. — murmurou.
— Nada nessa casa é. — respondeu Miguel, lacônico.
Ela segurou o celular contra o peito, como se fosse um amuleto. O reflexo fraco da tela piscava ao ritmo da notificação de bateria baixa, mas Larissa não teve coragem de desligá-lo. Aquela luzinha mínima dava a ilusão de algum tipo de conexão com o mundo lá fora.
No canto da sala, um piano coberto por um lençol chamava atenção. O tecido, manchado, revelava a forma inconfundível das teclas sob o relevo. Larissa engoliu em seco. Por um segundo, teve a nítida impressão de ouvir um acorde solitário, abafado, ecoar.
— Ouviu isso? — perguntou, hesitante.
Miguel virou o rosto para ela, a expressão carregada de ceticismo.
— O quê?
— Nada. — disse rápido, mordendo o lábio.
Era mais fácil culpar sua imaginação.
O olhar dele percorreu o ambiente outra vez, até se fixar a parede lateral com uma rachadura, a mesma imagem da foto. Ele a seguiu com os olhos, e no tapete puído próximo à parede havia uma irregularidade, um pequeno volume sob o tecido. Miguel se abaixou, levantando o carpete com cuidado.
— Larissa. Veja isso.
O que apareceu foi um pedaço de papel amarelado, colado ao chão pela umidade. Ele usou a ponta do canivete para soltá-lo e entregou a Larissa.
O papel era frágil, de bordas esfareladas, como se pudesse se desintegrar a qualquer toque mais brusco. A caligrafia trêmula, irregular, parecia ter sido escrita às pressas. As palavras, no entanto, saltavam com clareza:
“O que começa com música, termina em silêncio.”
Larissa sentiu o coração acelerar. A frase lhe pareceu um soco de déjà-vu. Era a mesma inscrição borrada que aparecia nos relatos antigos do crime, gravada na partitura manchada de sangue.
— Coincidência demais. — murmurou Miguel, os olhos fixos no papel.
Larissa segurava com cuidado o papel entre os dedos, e mesmo tentando manter a máscara de sarcasmo, o tremor era visível.
— Pode ser uma encenação. Alguém pode ter colocado isso aqui de propósito.
— Ou pode ser um aviso. — disse ele, sem mudar o tom.
Ela ergueu o olhar para ele.
— Você adora dramatizar, não é?
— Eu? — Miguel ergueu uma sobrancelha. — Você que entrou aqui achando que ia sair com um Pulitzer no bolso.
Larissa abriu a boca para retrucar, mas a voz morreu na garganta. Um estalo seco ressoou no andar de cima. Não foi o estalar natural da madeira antiga. Foi mais pesado, mais definido, como se alguém tivesse pisado ali.
Ambos congelaram. O silêncio posterior era tão absoluto que até o barulho da respiração parecia alto demais.
Larissa fechou os punhos, como se assim pudesse conter o tremor que ameaçava escapar pelas mãos. Miguel, com uma naturalidade assustadora, sacou o revólver do bolso e o manteve à altura do corpo, sem fazer alarde.
Os olhares se cruzaram. Breves, intensos, carregados de tudo o que não disseram em voz alta: medo, tensão, e aquela estranha cumplicidade que começava a crescer, apesar de ambos negarem.
— Vamos subir. — disse Miguel.
Larissa ergueu o queixo, tentando parecer mais corajosa do que se sentia.
— Claro. O que poderia dar errado?
***
As escadas estreitas aguardavam, cobertas de pó e manchas de infiltração que se espalhavam como veias escuras pelas paredes. Cada degrau parecia ameaçar ruir sob o menor peso, mas o silêncio que vinha do andar superior era mais assustador que qualquer risco físico.
Miguel posicionou a lanterna sob o revólver, ajustando o foco para cima. O feixe cortou a penumbra e iluminou partículas de poeira suspensas, que se moviam lentamente, como pequenos espectros vagando no ar.
— Primeiro os cavalheiros. — disse Larissa, a voz baixa, carregada de ironia.
— Que cavalheiros? — retrucou Miguel, sem humor.
Ele subiu o primeiro degrau. O som seco ecoou pela escada e reverberou no corredor vazio acima. Larissa o seguiu, tentando manter a postura firme, embora sentisse o frio gelado percorrer sua coluna.
No meio da subida, ela teve a sensação incômoda de que o ar ficava mais pesado, quase irrespirável. O cheiro de madeira úmida se misturava a outro odor, mais sutil e desagradável — algo próximo de carne envelhecida. Larissa apertou os lábios, forçando-se a não tossir.
A cada passo, a casa parecia reagir. Estalos nas paredes, rangidos longos que não coincidiam exatamente com seus movimentos. Como se houvesse outra presença ajustando o compasso da noite.
O corredor no andar superior surgiu como uma garganta escura. O papel de parede estava descascado em longas tiras, revelando o reboco manchado por infiltrações. As portas, todas semiabertas, criavam sombras distorcidas que pareciam observar os invasores silenciosos.
Miguel parou diante da primeira porta à esquerda. Ele empurrou devagar, revelando um quarto pequeno. Dentro, apenas uma cama de ferro enferrujado e uma cadeira tombada. Nada além do vazio — exceto pelo detalhe inquietante: no chão, marcas circulares mais claras, como se móveis pesados tivessem sido arrastados dali recentemente.
Larissa observou em silêncio, o coração martelando. Um arrepio percorreu sua nuca, como se alguém a observasse pela fresta da porta atrás dela. Virou-se rápido — nada. Apenas o corredor silencioso.
— Eu odeio essa casa. — murmurou.
— Bem-vinda ao clube. — respondeu Miguel, com a calma que parecia provocar ainda mais desconforto.
Avançaram. O segundo quarto tinha uma janela quebrada, por onde o vento entrava com um assobio agudo. As cortinas desfiadas tremiam como espectros tentando escapar. Havia um guarda-roupa encostado à parede, a porta entreaberta. Miguel lançou o facho da lanterna para dentro. Nada. Apenas escuridão e cheiro de mofo.
Larissa respirou fundo, tentando controlar a ansiedade. Cada passo era uma batalha entre a vontade de sair correndo e a determinação de não dar o braço a torcer diante de Miguel.
Foi então que ouviram.
Um som arrastado, grave, como se alguém deslizasse os pés pelo corredor atrás deles.
Larissa congelou. Miguel girou o corpo rapidamente, lanterna e arma em punho. O facho de luz percorreu o corredor vazio, revelando apenas o pó suspenso.
O silêncio voltou a se impor, denso como um manto.
— Você ouviu. — disse Larissa, a voz firme apesar do tremor evidente.
— Eu ouvi. — respondeu Miguel.
Eles continuaram até a última porta, no fim do corredor. Diferente das outras, essa estava fechada. A madeira era mais escura, reforçada, como se tivesse sido trocada em algum momento. Miguel pousou a mão sobre a maçaneta.
Foi nesse instante que o som se repetiu dentro do quarto. Mais próximo. Um estalo seco, como um passo dado.
Larissa engoliu em seco. O impulso era recuar, mas algo a prendeu ali. Talvez fosse o orgulho, talvez a necessidade de provar a si mesma que não era apenas uma intrusa curiosa.
Miguel respirou fundo, girou a maçaneta e abriu a porta lentamente. Nesse momento o silêncio foi rompido.
De dentro da penumbra além da porta, uma voz grave e arrastada se fez ouvir:
— Eu… não queria assustar.
A frase ecoou pelo corredor como um trovão abafado.
Larissa sentiu a pele inteira arrepiar, o estômago se contrair, e o mundo se comprimir naquele instante.
Miguel firmou a lanterna na direção da voz, os olhos estreitos, cada músculo pronto para reagir.
Capítulo 4 – O homem da Casa 94
O homem que emergiu da escuridão parecia feito de restos de noites maldormidas. A barba crescida e irregular escondia parcialmente o rosto, mas não o suficiente para disfarçar as rugas profundas que lhe marcavam a pele. Os olhos, fundos e injetados, carregavam uma inquietação que parecia ir além da situação presente — como se trouxessem memórias que ninguém deveria carregar sozinho. O casaco cinza puído cheirava a cigarro velho misturado com a maresia do ar úmido.
— Quem é você? — perguntou Miguel, a voz baixa, mas firme. O revólver apontada na direção do estranho.
O homem ergueu as palmas num gesto de rendição. — Calma… eu não vim pra isso. — A respiração dele saía irregular, carregada de nervosismo. — Sou Roberto. Eu… morei na casa ao lado, a 94.
Larissa estreitou os olhos, desconfiada, mas avançou um passo, ignorando a tensão no olhar de Miguel. — E o que você está fazendo aqui, escondido no escuro?
Roberto passou a mão pelo cabelo desgrenhado, um gesto rápido, repetitivo, quase compulsivo. — Eu precisava ter certeza de que vocês estavam aqui por causa dele. — Baixou o tom, quase sussurrando. — Do professor Benevides.
O nome caiu no ar como poeira grossa, pesada. Larissa engoliu em seco.
Miguel não relaxou nem um centímetro. — E o que você tem a ver com isso?
Roberto riu baixo, sem humor, um som quebrado que parecia vir de alguém acostumado a rir sozinho de coisas que os outros não entenderiam. — Talvez nada. Talvez tudo. Eu vi mais do que devia naquela época. E guardei coisas que não deveria.
Larissa avançou mais um passo, ignorando a mão de Miguel que tentou detê-la discretamente. — Que tipo de coisas?
Roberto desviou o olhar, fixando-se no vão da janela quebrada como se preferisse encarar a chuva fina do que a intensidade dos olhos dela. Seus dedos esfregavam-se sem parar, sujos de nicotina impregnada. — As pessoas acham que foi só um acidente. Um tropeço, uma queda… — a voz falhou —, mas não foi. Eu ouvi o piano naquela noite. Ouvi coisas que não consigo esquecer.
O silêncio que se seguiu foi quase tão sufocante quanto o mofo da casa. Larissa sentiu um incomodo com o modo como ele parecia estar carregando um segredo que lhe corroía a pele.
Miguel, pragmático, deu um passo à frente. — Se tem algo, mostre. Senão, é só mais um vizinho curioso querendo atenção.
O olhar de Roberto se fixou nele por um segundo, duro, quase ofendido. Depois, num gesto brusco, enfiou a mão dentro do casaco. Larissa prendeu a respiração, o estômago se contraindo como se esperasse um brilho metálico surgir. Mas o que saiu foi um objeto pequeno, retangular, protegido por um saco plástico amarrotado.
Ele estendeu a mão trêmula. — Achei isso atrás de um armário, depois que a polícia parou de bisbilhotar. Nunca tive coragem de ouvir até o fim. Mas… talvez vocês precisem mais do que eu.
Miguel abaixou o revólver, entregou a lanterna para Larissa e, com a outra mão pegou o pacote, retirou o plástico, que revelou uma fita cassete. O número “3” estava rabiscado em vermelho, com tinta quase apagada.
Larissa inclinou-se para mais perto, sem pedir permissão, os olhos brilhando com aquela mistura perigosa de curiosidade jornalística e medo genuíno. — Isso parece coisa de filme de segunda — murmurou, tentando disfarçar o tremor nos dedos ao tocar de leve a fita. — Vai ver, quando a gente colocar, vai surgir uma maldição.
O sarcasmo era nítido, mas não arrancou nenhuma reação de Miguel. Ele mantinha o maxilar travado, observando a fita como quem avalia uma prova de crime. Aquele ar de ex-policial nunca o abandonava; estava sempre ali em cada gesto calculado, em cada silêncio pesado.
Roberto, no entanto, parecia cada vez mais inquieto. Andava de um lado para o outro do quarto estreito, esfregando as mãos, estalando os dedos como se fosse um hábito que denunciava sua ansiedade. O cheiro de cigarro impregnado no casaco dele misturava-se ao mofo da casa, criando uma atmosfera sufocante.
— Não brinque com coisa séria moça. Vocês não entendem… — disse de repente, a voz quase um sussurro, quase engolida pelo som da chuva, que começava a cair forte. — Ele sabia demais. E agora vocês sabem que sabem.
Larissa arqueou uma sobrancelha, tentando arrancar dele mais alguma coisa. — “Ele”? Você está falando do professor Benevides?
Roberto fez que sim, um gesto mínimo, como se tivesse medo de que até mesmo acenar confirmasse demais. — Ele dizia… dizia que a música era a chave. Que cada nota era um sinal. — Fechou os olhos por um instante, respirando fundo. — Mas depois… depois veio o silêncio.
O olhar perdido dele deixou Larissa arrepiada. Ela tentou buscar firmeza em Miguel, mas encontrou apenas um semblante sombrio, desconfiado.
— Se sabia de tanto, por que nunca contou nada à polícia? — Miguel quebrou o silêncio.
Roberto girou a cabeça lentamente em direção a ele, os olhos arregalados de uma forma perturbadora. — Porque a polícia não ouve. — A frase saiu seca, cortante, carregada de rancor. — E porque eles estavam lá… naquela noite.
A confissão pairou no ar como fumaça espessa. Larissa sentiu a cabeça girar. Miguel, por sua vez, franziu a testa, mas não replicou imediatamente. Apenas fechou a mão ao redor da fita, como se aquilo pudesse lhe dar algum controle.
O silêncio que se seguiu foi incômodo. O único som era o gotejar persistente vindo da janela quebrada Larissa percebeu que estava prendendo a respiração e soltou o ar devagar, tentando não demonstrar o quanto aquelas palavras tinham a abalado.
— Então por que entregar isso agora? — insistiu ela, o tom de genuína necessidade de resposta.
Roberto não respondeu de imediato. Passou a mão no rosto, cansado, e deu alguns passos em direção à escada. — Porque eu não aguento mais. Essa fita… esse som… eu ouço até quando durmo. Isso virou um inferno na minha vida — A voz falhava, arrastada. — E porque não quero estar aqui quando eles voltarem.
Miguel estreitou os olhos. — Eles quem?
Roberto parou por um instante. Olhou para os dois como quem avalia se vale a pena dizer. — Vocês vão descobrir sozinhos. — E, antes que qualquer um pudesse reagir, virou-se e sumiu na escuridão do corredor.
O som dos passos apressados contra a madeira ressoava em ecos agudos. Larissa correu até o topo da escada, inclinando-se, mas só conseguiu ver o vulto dele desaparecendo no breu do andar inferior. — Espere! — gritou, sem obter resposta.
O ranger da porta principal se abriu com violência, deixando o vento frio e a chuva se infiltrarem pela entrada. O portão, lá fora, bateu contra o batente, o som metálico que ecoou por toda a casa como uma despedida áspera. Depois, nada. Apenas a respiração pesada dos dois e o coração acelerado de Larissa.
— Isso foi… estranho — ela murmurou, ainda com os olhos fixos no vazio deixado por Roberto.
Miguel não respondeu de imediato. Guardou o revólver no bolso interno da jaqueta e ergueu a fita contra a luz da lanterna, observando-a como se fosse capaz de arrancar segredos apenas encarando-a. — Estranho é pouco. Esse homem pareceu mais assombrado do que a própria casa.
Larissa deu uma risada nervosa, cruzando os braços. — Ou mais culpado. Você não acha?
— Ou sobrevivente — replicou ele, sem tirar os olhos da fita. — Talvez os dois.
O silêncio retornou, pesado, quase sufocante. A sensação de vazio deixada pela fuga abrupta de Roberto parecia encher cada canto do cômodo. Larissa percebeu que, apesar da casa estar agora “vazia”, ela nunca se sentira menos sozinha — como se a própria sombra de Roberto ainda estivesse ali, impregnada nas paredes.
Miguel quebrou o silêncio por fim, colocando a fita no bolso interno da jaqueta, junto do revólver. — Vamos ouvir isso.
Larissa concordou com um aceno quase imperceptível. O coração ainda batia descompassado, seu olhar estava fixo na escada, como se esperasse que Roberto surgisse de novo, trazendo mais segredos.
Mas tudo o que veio foi o rangido distante do portão balançando ao vento.
***
Miguel demorou alguns segundos antes de localizar um gravador antigo em cima de uma estante baixa na sala principal, semi escondido sob uma pilha de jornais embolorados. O aparelho estava coberto por uma fina camada de poeira, mas ainda inteiro — um modelo dos anos 90, com botões grandes e arranhados, a carcaça amarelada pelo tempo — vasculhou as gavetas em busca das pilhas, que por sorte, estavam na segunda gaveta.
— Você não vai me dizer que essa geringonça ainda funciona — Larissa comentou, cruzando os braços, mas seus olhos estavam fixos no objeto com um brilho inquieto.
Miguel soprou o pó, testou a abertura da tampa e encaixou a fita com cuidado quase cerimonial. — Só tem um jeito de descobrir.
O clique seco do botão “play” quebrou o silêncio da sala. Um chiado áspero tomou conta do ambiente, fazendo os dois franzirem o rosto instintivamente. Era como se milhares de agulhas invisíveis arranhassem o ar, vibrando nos ouvidos de uma maneira desconfortável, metálica.
Larissa levou a mão ao ouvido direito, apertando-o com força. — Isso dói. — Sua voz saiu num sussurro, como se tivesse medo de falar mais alto do que o chiado.
Miguel não respondeu. O olhar fixo indicava que esperava algo, e ele não estava errado. O ruído de fundo lentamente cedeu espaço a uma voz masculina.
— “Se alguém encontrar isto…” — A respiração arfante de Heitor Benevides soou primeiro, pesada, como se ele tivesse corrido ou lutado antes de gravar. — “…é porque eu não consegui escapar.”
Larissa estremeceu. O som não era apenas de um homem cansado: havia um desespero denso em cada pausa. Miguel apoiou a mão no joelho, inclinando-se mais perto do gravador, como se a proximidade fosse ajudá-lo a decifrar melhor.
— “Eles estão em toda parte. Observam, esperam. A música… a música é a chave. Não entendam como harmonia. É… atração. Frequências. Eles escutam quando tocamos.”
No fundo, um piano soou. As notas eram desconexas, tocadas como se os dedos de Heitor estivessem trêmulos. Uma sequência curta, repetida, que não seguia lógica musical alguma. O efeito foi imediato: o ar pareceu vibrar, uma espécie de pressão invisível contra o peito.
— Isso parece mais tortura sonora — ela murmurou, tentando disfarçar o pânico com ironia.
Miguel não respondeu, os olhos semicerrados, absorvendo cada sílaba.
— “Se ouvirem isso… parem. Parem antes que o som alcance vocês também.” — A voz falhou. Seguiu-se uma tosse seca, abafada. — “Mas se continuarem… olhem para o silêncio. É lá que a resposta se esconde.”
O piano repetiu as mesmas notas. Três vezes. Cada repetição parecia mais forte, como se a gravação tivesse vida própria. A cabeça de Larissa latejou, um zumbido se instalando entre os ouvidos. Ela cerrou os olhos, sentindo o gosto metálico familiar que vinha sempre em situações de estresse extremo.
De repente, o chiado retornou, engolindo a voz de Heitor em um mar de ruídos. O gravador estalou, e o som parou abruptamente. O silêncio que se seguiu foi opressor, tão denso que parecia ter peso físico.
Larissa foi a primeira a soltar o ar em um suspiro trêmulo. — Santo Deus… o que foi isso?
Miguel manteve-se imóvel, a fita ainda girando em falso. Finalmente, retirou-a do aparelho. — Ele estava com medo. Isso não era encenação.
— Com medo? — Larissa riu nervosa, mas o som soou falso até para ela. — Ele parecia estar à beira de enlouquecer! Esse piano, essa coisa que ele chama de “frequências”… — Ela esfregou a têmpora com força, tentando aliviar a pressão que ainda sentia. — Eu juro que, por um segundo, parecia que tinha alguém… ouvindo junto com a gente.
Miguel ergueu o olhar, sério, e não rebateu. O silêncio dele era pior do que qualquer resposta cética.
Ela desviou os olhos, irritada. — Ótimo, vai ficar calado agora? Porque eu preciso de você me dizendo que é só coisa da minha cabeça, sabe?
— Não posso dizer isso. — A frase foi curta, seca.
Larissa arregalou os olhos, uma mistura de indignação e medo.
Miguel passou a mão pelos cabelos, exasperado. — Eu já ouvi gravações de gente com medo, jornalistas, testemunhas, até policiais. — A voz dele carregava uma gravidade dolorosa. — Mas essa voz… essa voz é de quem já passou do limite.
Larissa não respondeu. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, lembrando-se de um colega de redação que certa vez dissera: “Você não deveria mexer com casos antigos, Larissa. Alguns mortos não querem ser lembrados.” Na época, rira da frase. Agora, parecia fazer sentido.
O silêncio se prolongou. O vento lá fora fez a janela tremer, e um pingar constante de água escorria pela calha quebrada, criando um ritmo irregular que parecia ecoar a própria melodia da fita.
Miguel guardou o gravador e a fita na mochila de Larissa. — Seja lá o que for, Benevides não gravou isso por acaso. E se ele tinha razão… não somos os únicos ouvintes.
Larissa quis responder com ironia, mas sua garganta secou. Ao invés disso, apenas fitou a janela escura, onde por um instante teve a impressão de ver um vulto. Quando piscou, não havia nada.
— Vamos embora daqui — disse Miguel, rompendo o peso do momento. — Já passamos tempo demais nesse mausoléu.
Larissa assentiu. Mas foi quando se dirigiam em direção a porta da frente que ouviram passos.
Capítulo 5 – Feridas Abertas
Miguel, a alguns passos, mantinha o revólver firme na mão. Seu peito subia e descia devagar, o fôlego controlado por disciplina antiga. Mas havia suor no rosto, e uma tensão nos maxilares que denunciava o esforço de parecer inabalável.
O barulho dos passos que antes ecoara no quintal tinha desaparecido, mas o vazio deixado em seu lugar era ainda mais incômodo. Um vazio denso, como se a casa tivesse absorvido o intruso de volta para si.
— Eu devia estar em casa agora — Larissa quebrou o silêncio, a voz rouca de esforço e nervosismo. — De pijama, tomando chá, brigando com a porcaria da calefação que vira e mexe falha. Mas não, eu tô aqui, correndo atrás de vultos numa casa assombrada com um ex-policial. — Ela respirou fundo, os dedos, outra vez, apertando o celular contra o peito. — É oficial: minha carreira jornalística me odeia.
Miguel ergueu uma sobrancelha, mas não largou a arma. — Sua carreira ou você mesma?
A provocação veio baixa, quase calma, mas carregada de sarcasmo.
Larissa virou o rosto para ele, os olhos faiscando mesmo na penumbra. — Desculpa, você agora é psicólogo? Porque até onde sei, é só um cara que saiu da polícia antes da hora.
Miguel não respondeu de imediato. Guardou o revólver no coldre e passou a mão pelo rosto molhado, como quem afasta lembranças ruins. Quando falou, a voz saiu mais grave do que pretendia.
— Saí porque tive meus motivos.
O silêncio voltou a pesar entre eles, mas dessa vez era diferente: não era o vazio da casa, e sim o peso de palavras que não podiam ser desditas.
Larissa respirou fundo, tentando retomar o sarcasmo como escudo. O lábio inferior, no entanto, tremia levemente. Ela passou os dedos pelos cabelos úmidos, puxando-os para trás num gesto brusco, como se pudesse assim organizar os próprios pensamentos.
Um trovão distante retumbou sobre Curitiba, fazendo os vidros quebrados da janela vibrarem. Larissa encolheu os ombros sem querer, o susto traindo a coragem ensaiada.
***
O silêncio durou tempo demais. Larissa sentiu o peso do incômodo de ter deixado escapar o medo. Não suportava a ideia de parecer vulnerável diante de Miguel. Apertou os braços contra o corpo, tentando disfarçar o tremor, e deixou escapar um riso curto, irônico.
— Então é isso? — disse, andando pelo cômodo em passos curtos, o salto das botas estalando no piso de madeira. — Você aparece do nada, me segue, se mete na minha investigação e agora… resolve bancar o herói silencioso? Não funciona comigo, Vasconcellos.
Miguel a observou sem pressa, os olhos semicerrados. Parecia cansado. — Você chama isso de investigação? — A voz dele era baixa, mas afiada. — Até agora, tudo que vi foi você se jogando no escuro, sem saber se vai encontrar uma pista ou uma bala.
Larissa parou diante dele, inclinando-se um pouco para reduzir a distância. — E você prefere o quê? Que eu escreva sobre inauguração de padaria nova na Rua XV? Foi isso que sobrou pra mim, sabia?
Miguel ergueu uma sobrancelha, mas não respondeu.
Larissa apertou os lábios, os olhos faiscando. — Eu já tive chance. Já estive em redação grande, com editor que acreditava em mim. Mas aí… eu insisti demais numa matéria sobre tráfico. Disse que tinha provas, que podia expor gente grande. Ninguém quis me ouvir. Disseram que eu estava inventando coisas, que era paranoia. No fim, perdi o emprego. E sabe o que é pior? — A voz tremeu, e ela apertou os punhos. — Uma das fontes que eu entrevistei foi encontrada morta dois meses depois.
Miguel a encarou em silêncio. Ele queria dizer algo — talvez que a culpa não era dela, talvez que esse tipo de coisa acontecia —, mas engoliu as palavras. O peso nos ombros dele já era suficiente.
— Você acha que eu corro atrás disso por vaidade, não é? — Larissa continuou, a voz oscilando entre raiva e confissão. — Que eu quero manchete, clique, fama… Eu corro porque preciso provar que eu posso. Mesmo que doa. Mesmo que eu falhe de novo.
Miguel baixou os olhos. A mão direita roçou o coldre, mas o gesto era mais uma âncora do que segurança. Respirou fundo, e, pela primeira vez naquela noite, deixou o próprio silêncio se quebrar.
— Eu tinha um parceiro — disse, devagar, como se tirasse as palavras de um porão trancado. — Paulo. Entramos juntos na polícia. Era meu amigo de infância. Um caso maldito, uma batida que deveria ser simples… E eu errei. — Os olhos dele se perderam num ponto da parede. — Ele não voltou pra casa. E eu…
Larissa o olhou sem sarcasmo pela primeira vez. O coração batia rápido pelo que via nos olhos dele: não arrogância, não frieza, mas uma dor seca, que não precisava de palavras bonitas.
Outro trovão voltou a estremecer as vidraças. Larissa respirou fundo, engolindo a emoção. — Então somos dois. Dois fracassados tentando resolver um caso que todo mundo já esqueceu.
Miguel ergueu os olhos para ela. E, em vez de negar, apenas esboçou um sorriso cansado, quase cúmplice.
— Talvez — disse. — Mas, pelo menos, não estamos sozinhos nessa casa maldita.
Larissa deixou escapar uma risada curta, mas havia um peso de verdade no que ele acabara de dizer. O sarcasmo dela, dessa vez, não tinha força para esconder a vulnerabilidade.
***
O vento atravessou as frestas das janelas com um assobio baixo, fazendo o papel de parede descascado se erguer em pequenas ondas. Larissa puxou o casaco, como quem tenta afastar não só o frio, mas também o desconforto da própria confissão.
Sentou-se no sofá encardido, apoiando os cotovelos nos joelhos. O celular descansava na palma da mão, e a tela escura refletia apenas o cansaço em seus olhos. Miguel permaneceu de pé, imóvel, os ombros largos projetando uma leve sombra na parede, da luz que vinha de fora.
Outro trovão fez tremer as vidraças, e a lâmpada no teto piscou, lançando a sala numa penumbra irregular. Por um instante, Larissa fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o cheiro de mofo e poeira molhada que parecia impregnar a casa. Quando abriu os olhos, percebeu que Miguel a observava em silêncio.
— O que foi agora? — ela disparou, num tom defensivo. — Vai me dizer que respiro errado também?
— Estava só pensando — ele respondeu, simples, desviando o olhar.
Esse desarme inesperado a desconcertou. Larissa esperava uma provocação, uma frase ácida de volta, mas encontrou apenas um homem cansado, que parecia carregar mais lembranças do que podia suportar.
Sem perceber, relaxou os ombros. A fagulha de cumplicidade entre eles não precisou de declaração: estava no gesto silencioso, no modo como permaneceram lado a lado, respirando o mesmo ar pesado da casa, sem precisar vencer um ao outro por alguns instantes.
Do lado de fora, a chuva engrossou, tamborilando nas telhas e no portão enferrujado. O som parecia marcar o compasso de uma música triste.
***
Enquanto esperavam a chuva ceder para poderem ir embora, Larissa tentava se acomodar sobre do sofá empoeirado, respirando fundo como se, por um instante raro, pudesse se permitir relaxar, por outro lado Miguel observava em silêncio com a mão sobre o coldre — o instinto de nunca relaxar era mais forte que qualquer outro gesto. A chuva do lado de fora se tornou um ruído de fundo quase hipnótico, embalando o silêncio.
De repente, um estalo seco rompeu o equilíbrio. Ambos se sobressaltaram ao mesmo tempo, os corpos reagindo antes da mente. O barulho veio do corredor estreito que levava à cozinha.
— Você ouviu isso? — a voz de Larissa saiu num fio, baixa demais.
Miguel apenas assentiu, os olhos estreitados e a arma em punho. Deu dois passos à frente, e o assoalho respondeu com um gemido agudo.
Larissa com as mãos fechadas sobre o peito, seguia atrás dele. A janela que dava para o quintal a fez prender a respiração: por um instante, jurou ver uma sombra se mover do lado de fora.
— Miguel… — ela murmurou, mas não conseguiu completar.
Ele ergueu a mão em sinal de silêncio e avançou, abrindo caminho até a cozinha. O cheiro de ferrugem e umidade parecia mais intenso ali. O silêncio pesava, até que um ruído metálico ecoou: o som claro do portão batendo na entrada da casa.
Larissa engoliu seco. Um arrepio percorreu sua nuca, e o frio pareceu se infiltrar ainda mais na pele.
Então, veio o som final: uma batida seca contra a vidraça da cozinha, tão forte que estilhaços de vidro se espalharam pelo chão. A rajada de vento entrou carregando gotas de chuva e o cheiro inconfundível de terra molhada.
Larissa deu um passo atrás, o coração disparado. Miguel se colocou à frente, corpo tenso, pronto para reagir. Mas não havia ninguém ali — apenas a escuridão da cozinha e o som cada vez mais distante de passos rápidos na lama.
O silêncio voltou, agora povoado por presenças invisíveis, por ameaças que já não se escondiam. Larissa e Miguel trocaram um olhar rápido, de quem sabe que está dentro de algo maior do que imaginava.
— Deve ter mais alguma coisa escondida na casa — disse Miguel, olhando no fundo dos olhos de Larissa.
Capítulo 6 – A Caixa de Música
A madrugada em Curitiba parecia se estender sem fim. Do lado de fora, a chuva havia diminuído para uma garoa fina, quase um sussurro constante, mas dentro da Casa 92 o silêncio tinha uma densidade incômoda. O frio se infiltrava pelas frestas das janelas, carregando consigo o cheiro de madeira molhada e mofo antigo. A cada estalo da estrutura, parecia que a casa se mexia, respirava, como se reconhecesse a presença intrusa daqueles dois.
A lanterna de Miguel vacilava, lançando feixes de luz que criavam sombras alongadas nas paredes descascadas. Larissa se ajeitou novamente no sofá empoeirado, abraçando os joelhos por um instante, fingindo distração enquanto observava Miguel com o canto dos olhos. Ele não parava, movendo-se pelo cômodo com a disciplina de quem estava em uma cena de crime.
— Você está agindo como se fosse achar um corpo escondido atrás do armário — disse ela, a voz carregada de sarcasmo. Os dedos, mecanicamente enrolando uma mecha de cabelo, um gesto nervoso disfarçado de tédio.
Miguel parecia não ter ouvido. Empurrou uma cadeira, testou a madeira da estante com as mãos firmes, como se cada móvel guardasse um segredo. Apenas quando se agachou diante da lareira, passando os dedos pelas bordas das pedras frias, falou:
— Não é um corpo que eu procuro. É algo que possa estar escondido.
Larissa arqueou uma sobrancelha, mas não insistiu. A lanterna refletiu por um segundo no rosto dela: os olhos faiscando.
De repente, um clique seco quebrou o ritmo da noite. Miguel pressionara um tijolo solto na lateral da lareira, e um rangido profundo ecoou do painel de madeira acima, como se a própria casa respondesse.
Larissa se endireitou no sofá, o sarcasmo engolido pela surpresa.
— Não acredito… Você realmente achou uma passagem secreta?
Miguel puxou o painel, revelando um compartimento empoeirado. O ar que escapou dali tinha o cheiro concentrado de pó antigo e papel envelhecido. Um odor de décadas de clausura.
Dentro, repousava uma pequena caixa de madeira trancada por um cadeado enferrujado.
Larissa se levantou devagar, a respiração mais rápida. Aproximou-se como se estivesse diante de um relicário sagrado.
— Parece cena de filme do “Indiana Jones.” — murmurou, embora sua voz tivesse um tom de reverência.
Miguel apenas tirou o canivete do bolso.
— Ou de um crime que nunca foi resolvido.
O silêncio foi cortado pelo estalo metálico do cadeado ao se partir sob a força experiente de suas mãos.
***
O cadeado cedeu com um estalo áspero, quase um grito abafado. O som ecoou pelo cômodo vazio, tão alto no silêncio da madrugada que fez Larissa prender a respiração. Miguel ergueu a tampa com cuidado, como se esperasse que algo saltasse de dentro.
O cheiro foi o primeiro a escapar: uma mistura sufocante de papel envelhecido, poeira e um odor metálico que lembrava sangue seco. A lanterna iluminou o interior, revelando a desordem organizada de quem quis esconder algo às pressas.
Havia partituras rabiscadas, folhas soltas com notas musicais interrompidas por símbolos estranhos: círculos concêntricos, cruzes inclinadas, palavras em latim mal traçadas na margem. Os papéis estavam amarelados, quebradiços, como se tivesse sido manuseado muitas vezes e, depois, esquecido por décadas.
Larissa se inclinou, o olhar fixo, os dedos hesitando no ar antes de tocar. Quando finalmente pousou a ponta dos dedos na primeira folha, franziu o cenho.
— Isso não parecer ser música… — murmurou, como se falasse para si mesma. — Parece mais com um… código.
Miguel segurou uma das partituras à altura dos olhos, estudando os símbolos como se tentasse encaixá-los em algum padrão lógico. O pragmatismo dele contrastava com o fascínio quase reverente de Larissa.
Ela não resistiu: pegou outra folha e correu os olhos pelas notas. A caligrafia irregular, trêmula, lembrava a escrita de alguém à beira do esgotamento.
— Ele não estava só compondo… — disse, com a voz mais firme agora. — Ele estava tentando deixar uma mensagem, ou… avisar alguém.
Miguel olhou para ela, a sombra da lanterna dividindo seu rosto em luz e escuridão.
— Ou tentando se salvar de alguma coisa.
Entre as partituras, um envelope pardo trouxe à tona outra camada de mistério. Dentro, fotografias antigas: retratos em preto e branco de Heitor Benevides, mais jovem, em apresentações no Conservatório. Em uma delas, Heitor aparecia ao lado de um grupo de alunos, o rosto parcialmente borrado pela umidade. Em outra, mais perturbadora, ele estava sozinho ao lado do piano, olhando diretamente para a câmera, o olhar fixo demais, intenso demais.
E então, no fundo da caixa, apareceu o objeto mais inquietante: uma fita cassete preta, com um rótulo simples de papel colado na lateral. Em vermelho, rabiscado à mão, lia-se apenas:
“7 – Verdade”.
Larissa tocou a fita como se fosse uma peça frágil de museu. O peso leve em sua mão contrastava com a gravidade do que poderia conter.
— O número três já foi assustador o bastante… — disse ela, tentando usar o sarcasmo como escudo. — Imagina o sete.
Miguel pegou a fita sem cerimônia, mas o olhar sério não deixou espaço para ironias.
— Seja o que for, não é para ficar guardado. Acredito que ele queria que fosse encontrado.
Larissa pegou o gravador da mochila. O clima era de um ritual prestes a começar.
Ela se sentou em uma cadeira, cruzando os braços, mas não conseguia esconder o tremor sutil nos dedos. Miguel soprou a poeira da fita, encaixou-a no gravador e, por um instante, ambos permaneceram em silêncio, respirando fundo, como se o próximo som pudesse mudar tudo.
Apertou o play.
O mesmo chiado inicial da outra fita encheu o ar, arranhando os ouvidos, trazendo aquela sensação de que algo invisível estava prestes a invadir o ambiente.
***
O chiado persistiu por alguns segundos, áspero como lixa nos ouvidos, até que uma voz emergiu do fundo, abafada, quase engolida pela estática.
“Se você está ouvindo isso… significa que o tempo se esgotou.”
Era a voz de Heitor Benevides. Diferente da fita anterior, não estava quebrada pelo pânico. Soava calma, solene, mas, aparentemente, artificial, como quem se obriga a manter a compostura diante do abismo.
Larissa arregalou os olhos. O som parecia atravessar sua pele, como se Heitor não falasse apenas através do gravador, mas direto dentro da sala. Miguel inclinou o corpo para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, os olhos semicerrados — não piscava, como se não quisesse perder uma sílaba sequer.
A fita continuou:
“A música não é só som. É chave. Frequência. Tudo vibra. O mundo vibra. E quando tocamos as notas certas, em sequência, abrimos uma fenda… e algo responde.”
Um som agudo começou a se sobrepor à voz. Não era exatamente música, não. Era uma nota contínua, dissonante, que variava sutilmente de intensidade, o suficiente para incomodar. Larissa levou a mão ao ouvido, como se pudesse afastar a pressão que crescia dentro da cabeça.
— Está me dando enjoo… — murmurou, apertando os olhos. — É como se… como se o ar tivesse ficado pesado.
Miguel sentiu também: o gosto metálico na boca, o zumbido no fundo do ouvido, a nuca úmida de suor frio. Mas manteve a postura, embora a mandíbula travada denunciasse o esforço.
A voz retornou levemente abafada pelo ruído:
“Não é superstição. Não é delírio. A música atrai. Sempre atraiu. Eles me observam quando toco. Estão à espera da melodia completa. O silêncio é apenas o intervalo do chamado.”
O piano começou a soar ao fundo: notas repetitivas, curtas, mas desalinhadas, como se o próprio instrumento resistisse ao que estava sendo tocado. Cada tecla pressionada parecia vibrar nas paredes da Casa 92, como se os ecos atravessassem tempo e espaço.
Larissa não suportou.
— Desliga, Miguel. — A voz dela saiu fraca. — Isso… isso é torturante.
Ele hesitou, os dedos pairando sobre o botão de stop. O olhar duro, porém, mostrava que queria ouvir até o fim.
“Se a melodia for concluída, não haverá silêncio capaz de conter o que vem. A verdade… está entre as notas.”
O chiado aumentou de repente, o piano tornou-se mais irregular, até que uma última frase surgiu, distorcida, quase irreconhecível:
“O relógio não marca o tempo… ele o segura.”
E então, silêncio. Um silêncio que pesava mais do que qualquer som.
Larissa recostou-se na cadeira, a respiração curta, o coração disparado. Sua mão tremia levemente. Miguel desligou o gravador e permaneceu imóvel por alguns segundos, encarando o aparelho como se esperasse que ele voltasse a falar sozinho.
O ar parecia mais denso. Como se a fita tivesse alterado não apenas a percepção deles, mas a própria atmosfera da casa.
Larissa quebrou o silêncio, a voz rouca:
— Miguel… se isso for verdade, a gente não está só lidando com algo muito perigoso.
Ele apenas passou a mão pelo rosto, pressionando os olhos com força, tentando afastar a dor de cabeça que latejava.
Por dentro, porém, a certeza se instalava: aquilo não era mais um caso comum.
***
O silêncio posterior à fita era sufocante. Larissa ajeitou-se na cadeira, passando a mão pelos braços, tentando afastar o arrepio que se espalhava pela pele. Miguel, ainda imóvel, parecia uma estátua prestes a rachar.
Foi então que as batidas começaram.
Três toques secos, compassados, que ressoaram na madeira da porta da frente.
Tum. Tum. Tum.
Larissa prendeu a respiração, o estômago contraído.
— Você ouviu…? — murmurou, sem precisar completar a frase.
Miguel não respondeu. Seu corpo enrijeceu, e os olhos já estavam cravados na direção da entrada. As batidas na porta não eram apenas batidas comuns — pareciam ter ritmo. Um compasso quase idêntico ao da melodia irregular que ecoara na fita segundos antes.
Mais três.
Tum. Tum. Tum.
O coração de Larissa martelava. — Isso… isso é alguma brincadeira, não é? — tentou racionalizar, mas a própria voz soou insegura, quase infantil.
Miguel levantou-se devagar, o revólver em mãos, e avançou para a porta com a cautela de um caçador. Cada passo que dava fazia o assoalho ranger. Respirou fundo, segurou firme a maçaneta, e girou-a em um movimento rápido e abriu a porta.
A noite gelada entrou como um golpe. A chuva fina castigava o pátio, e o poste do outro lado da rua ainda piscava, lançando sombras intermitentes. Ninguém. Nenhuma figura humana, nenhum vulto fugindo. Apenas o portão de ferro rangendo levemente ao vento.
Mas havia algo preso com fita adesiva na madeira da porta.
Miguel arrancou com cuidado: um envelope pardo, úmido nas bordas pela garoa. As iniciais L.A. estavam rabiscadas em tinta preta, a caligrafia irregular.
Larissa, a alguns passos atrás, engoliu em seco. — Isso é pra mim? — A voz dela saiu em um sussurro seco, quase inaudível.
Ele abriu o envelope devagar, revelando um papel dobrado, quando abriu a imagem se revelou, uma fotografia em preto e branco. E o silêncio entre eles se tornou quase sólido.
Na imagem, estava Larissa, não na casa 92, no Batel, mas na porta da sua própria casa. A foto era recente. Recente demais.
Larissa levou a mão à boca, os olhos marejados. A sensação de invasão foi imediata, como se mãos invisíveis tivessem atravessado sua casa, seu espaço íntimo, arrancando dela algo que não deveria ser visto.
— Eles sabem onde eu moro… — murmurou, a voz trêmula.
Miguel manteve o olhar fixo na foto, mas seu maxilar travado denunciava a tensão. Dobrou o papel devagar e o colocou de volta no envelope. Quando ergueu os olhos para Larissa, sua expressão tinha mudado: menos ceticismo, mais determinação.
— A partir de agora, você não anda mais sozinha. — A frase não era proposta, era sentença.
Larissa nem pensou em reagir. Pela primeira vez desde que cruzara os portões da casa 92, o medo não era apenas da casa, da história ou das lendas. O medo agora era real.
Do lado de fora, o poste piscou mais uma vez, mergulhando a rua em escuridão total por três segundos longos demais. Quando a luz retornou, Miguel ainda encarava a noite, firme, como se esperasse que algo surgisse da penumbra.
Capítulo 7 – Sob Vigilância
O relógio do hall marcava quase duas da manhã quando Larissa e Miguel entraram no prédio e subiram para o segundo andar. Ela girou a chave da porta da quitinete. A lâmpada fluorescente do corredor bruxuleava como um aviso de que algo ali estava errado, e o som distante de um carro acelerando na rua ecoou entre as paredes estreitas.
O apartamento era pequeno, mas organizado, tinha um cheiro delicado de lavanda misturado a livros usados. E as cores branca e verde-oliva transmitiam tranquilidade. Era um espaço íntimo, que transmitia conforto e acolhimento.
Larissa deixou a mochila sobre uma cadeira e começou a percorrer o lugar com passos apressados. Fechou as cortinas, conferiu a tranca da janela da cozinha, ergueu o olhar para o teto como se pudesse flagrar câmeras escondidas. O apartamento que sempre foi sua fortaleza, de repente, parecia um cenário de insegurança.
— Estão brincando com a minha cabeça. — Ela falou mais para si mesma do que para Miguel, mas a voz saiu tensa, carregada de indignação. — Isso… isso é um jogo sujo.
Miguel apoiou as mãos no encosto de uma cadeira, observando-a. O rosto dele estava coberto por sombras, e a expressão, embora contida, deixava escapar um peso: a mistura de vigilância e memória de outros casos que não terminaram bem.
— Não é brincadeira. — Sua voz saiu baixa, firme. — Quem tirou aquela foto quer que você saiba que pode ser alcançada.
Larissa parou diante do espelho estreito do corredor, encarando o próprio reflexo. O coque bagunçado, o casaco grosso úmido, os olhos marejados — nada ali parecia com a mulher sarcástica que enfrentava editores ferozes de redação. Mordeu o lábio inferior até sentir o gosto do sangue.
— Ótimo. Virei modelo de álbum particular de stalker.
Miguel apenas ouviu, seu maxilar ainda contraído. A mão fechou em punho. Aproximou-se lentamente, pegou o casaco que escorregava dos ombros dela e ajeitou sem dizer palavra. O gesto foi simples, quase mecânico, mas carregado de intimidade. Larissa não se afastou, apenas deixou.
A quitinete ficou em silêncio. O tipo de silêncio denso que não acalma, mas oprime. O som de uma gota caindo da torneira na pia ecoava alto demais. Do lado de fora, um ônibus passou, e os faróis projetaram um feixe de luz pelas frestas da cortina, iluminando-os por um segundo.
Era como se a cidade inteira, com suas ruas molhadas, prédios antigos e esquinas mal iluminadas, estivesse respirando junto com eles, à espreita.
***
Larissa se recompôs. — Eu não preciso de babá, Miguel — passou as mãos pelos cabelos e arrumando-os para trás, um gesto nervoso disfarçado de impaciência. — Nem de alguém me lembrando a cada cinco minutos que estou em perigo.
Miguel a observou em silêncio, os olhos semicerrados, como quem mede distâncias invisíveis. Só depois de alguns segundos respondeu:
— Babá não. — Ele puxou uma cadeira e sentou-se, apoiando os antebraços sobre a mesa. — Proteção. E você confunde os dois porque nunca aprendeu a aceitar a diferença.
Ela bufou, virando de costas para ele. Caminhou até a janela e afastou a cortina apenas o suficiente para espiar a rua escura e deserta, apenas o poste da esquina projetava uma luz amarelada sobre o asfalto molhado.
— Eu não quero proteção, Miguel. — Sua voz saiu baixa, mas firme. — Já me permiti ter alguém me protegendo uma vez. Sabe o que aconteceu? Perdi a reportagem, perdi a equipe, perdi o respeito.
Ele inclinou a cabeça, o rosto parcialmente escondido pela sombra.
— E se continuar assim, pode perder mais do que isso. — A frase veio seca, mas não fria.
Larissa se virou, encarando-o:
— Ah, claro. O ex-policial sabe tudo sobre perdas.
O golpe foi baixo, e ela percebeu assim que disse. Miguel respirou fundo, esfregando o rosto com as mãos como quem tenta apagar fantasmas. Quando falou de novo, a voz estava mais grave:
— Eu sei, sim. — Um silêncio denso ocupou o espaço entre eles. — Sei o que é ver alguém morrer porque eu não estava lá para protegê-la.
Larissa recuou meio passo, o corpo tenso.
Miguel continuou, olhando para a mesa:
— Eu falhei, Andrade. E não foi em papel ou em manchete. Foi em carne e osso. Então, quando eu digo que você precisa de proteção, não é porque eu acho que você é fraca. É porque eu não quero ver aquilo se repetir.
Ela ficou parada por alguns segundos, o silêncio pesando sobre si. Mordeu o lábio até sentir outra vez o gosto de sangue, como se precisasse de dor física para não deixar escapar emoção.
— E eu… — a voz dela saiu quase em sussurro — Eu não quero ser só mais um nome nas notas de rodapé.
Miguel ergueu os olhos, e por um breve instante, ambos se encararam despidos de defesas. Havia cansaço, medo e raiva, mas também algo mais profundo: o reconhecimento silencioso de duas almas partidas, que, apesar de tudo, resistiam em admitir o quanto precisavam uma da outra.
Larissa desviou o olhar primeiro, resgatando a máscara de ironia:
— Só para constar, se eu topar que você fique por perto, não é porque acredito na sua teoria de salvador. É porque alguém precisa carregar o equipamento quando eu estiver ocupada com o furo.
O canto da boca de Miguel se ergueu em um sorriso mínimo, quase imperceptível.
— E alguém precisa se certificar de que você volte viva para escrever.
O silêncio que se seguiu de um acordo tácito.
***
Ela pegou novamente o papel com a foto com sua imagem em preto e branco — o papel levemente amassado, o rosto dela congelado em um instante banal, chegando em casa, como se fosse uma presa marcada por um caçador invisível. — O apartamento começou a encolher à medida que o silêncio se alongava.
Larissa respirava fundo, tentando manter o tom irônico que sempre a salvara em momentos difíceis, mas a voz lhe saía entrecortada:
— Então agora faço parte oficialmente um reality show… menos os patrocinadores.
Miguel pousou o olhar no papel amassado como se fosse uma prova de cena de crime. O maxilar travado, a respiração controlada. Larissa percebeu.
— Não faça essa cara, por favor. Já basta ter um stalker — disse, tentando soar firme.
Ele se aproximou, devagar, encostou os dedos no punho dela, forçando-a a soltar o papel. Larissa cedeu com um suspiro irritado.
— Você está com medo — disse Miguel, num tom que parecia constatação e não provocação.
— Eu estou com raiva — corrigiu ela. — Medo é o que eles querem que eu sinta.
Miguel arqueou uma sobrancelha, o sarcasmo dela arrancando dele um meio sorriso quase imperceptível.
— Claro. — Foi para junto dela, segurou em seus braços, a rodou e a guiou em direção ao banheiro — Agora tome um banho, você precisa descansar.
***
O quarto mergulhou em um silêncio espesso, quebrado apenas pela respiração desigual dos dois e pelo som da chuva insistente batendo contra os vidros da janela. Larissa pensava que talvez pudesse, enfim, descansar. Mas quando se deitou de lado, aconchegada em sua cama, o sono não veio. As imagens da foto — seu rosto congelado, o olhar de quem não sabia estar sendo observado — rodavam pela mente como um disco arranhado.
O relógio digital piscava 3h44 quando um ruído estranho se insinuou pelo corredor. Primeiro baixo, como o arrastar lento de uma sola, depois mais definido: passos.
Larissa se sentou, prendeu a respiração, os olhos arregalados no escuro. O corpo encolhido com o cobertor até o pescoço, como se ele pudesse protegê-la. Miguel já estava de pé, os músculos tensos, olhos fixos na porta. Ele não precisou de palavras: o silêncio entre eles comunicava a mesma coisa — não era imaginação.
Os passos se aproximaram e cessaram. O corredor voltou a ao silêncio. E depois, outro barulho indecifrável, muito próximo a porta.
Larissa cobriu a boca com a mão, tentando controlar a respiração ofegante. Miguel pegou o revólver e, sem barulho, se colocou junto a porta.
— Fique aí — fez o gesto de silêncio, murmurando, quase sem voz.
Larissa não conseguiu obedecer, rapidamente se levantou e trocou de roupa. Apesar de não fazer nenhum barulho, seu coração bateia tão forte que parecia ecoar pelo quarto.
Miguel abriu a porta devagar, o rangido das dobradiças soando alto demais na madrugada. O corredor estava vazio, iluminado apenas pela luz que bruxuleava. Ele caminhou, com cuidado, com a arma em punho, observando todos os cantos. Chegou a porta da rua, olhou em volta. Nada. A rua estava deserta.
Quando retornou ao pequeno apartamento, Larissa quase o acertou com um vaso. Estava tremula, tensa, mas pronta para se defender. Miguel pegou o vaso de suas mãos e colocou-o sobre a bancada da cozinha. Ela baixou a guarda e respirou.
Miguel fechou a porta com firmeza, trancando duas vezes. Encostou a testa por um instante contra a madeira, como se quisesse sentir a vibração de quem esteve ali. Quando se virou, encontrou Larissa abraçada aos próprios braços.
Ela tentou falar, mas apenas um sussurro escapou:
— O que é isso?
Miguel não respondeu. Apenas olhou para ela, e no silêncio que se seguiu, ficou claro para ambos: a perseguição não era mais um resquício do passado da Casa 92. Agora, estava dentro da vida deles, respirando o mesmo ar, rondando suas madrugadas.
— Tem mais alguma coisa… Precisamos voltar. — falou encarando Larissa.
Ela o olhou, seus olhos amedrontados.
Capítulo 8 – O Ritual no Sótão
A rua estava mergulhada em uma penumbra úmida quando eles voltaram à Casa 92. A neblina típica de Curitiba, densa e baixa, parecia grudar na pele como um véu gelado. Os postes piscavam em intervalos irregulares, projetando sombras longas e distorcidas sobre a fachada da casa. O ferro escura do portão estava encharcado pela chuva, exalando um cheiro forte de musgo e ferrugem.
Larissa encolheu os ombros no casaco, o tecido tinha um calor confortante. Mas sentia-se como se estivesse entrando em um filme de terror do qual não havia como sair. Fingiu leveza, soltando um meio sorriso:
— Sabe que se a gente morrer aqui dentro, é capaz de ninguém nos achar.
Miguel respirou fundo, como quem espanta o agouro. Apertou a lanterna na mão, os olhos fixos na porta da frente como se o próprio ar pudesse esconder uma emboscada.
Dentro da sala principal, o ambiente parecia diferente de todas as outras vezes. Não era apenas o frio impregnado nas paredes, o cheiro de mofo ou o rangido antigo do piso. Havia algo… um sentimento de hostilidade.
E então, antes que pudessem subir a escada, um rádio antigo sobre uma cômoda começou a chiar sozinho. Estático áspero, cortado por trechos de vozes distorcidas, como se alguém tivesse gravado fragmentos da fita “7” e os jogado de volta para eles.
— Isso não é possível — murmurou Miguel, tentando girar os botões, mas o rádio não tinha sequer energia ligada.
Larissa recuou, mãos nos ouvidos. O som era metálico, agudo, penetrava fundo, reverberando no peito como se fosse físico.
O chiado cessou tão abruptamente quanto começou. E a sensação de estar mais escuro caiu sobre eles. A escuridão se tonou tão densa que parecia ter peso, a lanterna de Miguel mal iluminava uma pequena distância, parecendo ter perdido a força. O silêncio posterior, ainda mais sufocante que o ruído.
— Vamos continuar — disse ele, determinado segurando a mão de Larissa. — Precisamos ir no único lugar onde não procuramos.
Larissa respirou fundo, tentando disfarçar o tremor na voz:
— Ok. Andar por uma casa abandonada no escuro no meio da madrugada. O que poderia dar errado?
E assim, guiados apenas pelo fraco faixo de luz da lanterna e pelo som dos próprios passos, começaram a subir a escada estreita.
***
Cada degrau da escada gemia sob o peso deles, um rangido prolongado que parecia ecoar por todo o interior da casa. Larissa sentiu o frio se intensificar conforme subiam, como se o sótão fosse um espaço separado, fora do tempo e da lógica. O cheiro mudou também: menos mofo, mais algo acre, lembrando carvão queimado misturado a cera derretida.
Quando chegaram do outro lado do sótão, onde, ainda, não haviam entrado, Miguel abriu a porta e ergueu a lanterna que revelou o cenário.
O lugar era baixo e abafado, com vigas de madeira expostas e o telhado marcado por infiltrações escuras. O ar era tão pesado que parecia vibrar, como se a casa tivesse prendido a respiração. No centro do piso, um círculo irregular de fuligem ainda marcado no chão. Vestígios de velas consumidas estavam espalhadas, manchas de carvão grudadas nas tábuas. Papéis amassados se acumulavam em um canto.
Larissa se aproximou primeiro, ajoelhando-se para examinar. Acho uma partitura inacabada, rabiscada às pressas. Passou os dedos pelas linhas borradas, como se quisesse sentir a textura da tinta. A música desenhada parecia incompleta, notas interrompidas no meio da frase, símbolos estranhos espalhados entre elas — alguns pareciam círculos, outros lembravam inscrições de algum tipo de culto.
— Isso não parece ser música — disse ela, a voz baixa. — Ou, pelo menos, não do jeito que a gente conhece.
Miguel, de pé atrás dela, observava com seriedade, analisando todos os detalhes. Seu olhar ia das velas consumidas às manchas de carvão, como se estivesse montando mentalmente um quebra-cabeça.
— Ritual. — A palavra saiu seca, certeira. — Seja lá quem esteve aqui, estava tentando criar um ritual.
Larissa ergueu o rosto, a ironia vindo automática:
— Ah, ótimo. Então, além de assassinato e perseguição, temos ocultismo no pacote. Vai me dizer que acredita nisso?
Ele hesitou antes de responder, e o silêncio foi mais perturbador do que qualquer resposta imediata. Finalmente, murmurou:
— Se eu credito, não importa. Eu já vi gente fazer coisas horríveis só por acreditar em algo.
Ela mordeu o lábio, desconfortável. Não era apenas o ambiente — era o tom de Miguel. Havia uma memória por trás daquelas palavras, algo que ele não estava dizendo.
De repente, um vento frio passou pelo sótão, vindo das frestas batendo a porta, e uma sombra percorreu o ambiente. Larissa estremeceu, e por reflexo, Miguel abaixou-se ao lado dela, a mão firme sobre o ombro dela. O gesto foi protetor, mas também um reflexo involuntário, quase íntimo.
— Viu isso? — ela sussurrou, os olhos arregalados.
— Vi. — A resposta dele foi curta, firme.
***
O sótão parecia suspenso no ar, abafado, denso, como se qualquer palavra pudesse rachar o uma parede imaginária e liberar algo que não deveria ser despertado. Larissa continuava ajoelhada diante da partitura, mas seus ombros tremiam. Ela enrolava uma mecha do cabelo úmido entre os dedos em movimentos rápidos, repetitivos, como quem precisa manter as mãos ocupadas para não perder o controle.
— Sabe o que é pior? — começou, a voz quase inaudível. — Eu passei a vida inteira tentando provar que não sou fraca. Jornalismo, pautas perigosas, brigas com editores… tudo para mostrar que eu era mais do que uma menina metida com um bloquinho de anotações. E olha só. — Ela ergueu a partitura, rindo com sarcasmo que se quebrou no meio. — Agora estou aqui, numa casa maldita, com medo de uma folha papel.
Miguel a encarou:
— Você não é fraca. — A voz dele era baixa, grave, firme. — Fracos são os que se escondem atrás de ameaças anônimas, de símbolos. Você está aqui, encarando.
Larissa bufou, tentando abafar a emoção que ameaçava escorrer pelos olhos:
— E você? Sempre assim, frio, calculista, o ex-policial que não sente nada? Deve ser fácil.
Miguel fechou os olhos por um segundo, e quando voltou a encará-la, havia uma sombra pesada em sua expressão.
— Não é que eu não sinta nada, só tive que aprender me anestesiar. — A confissão saiu mais dura do que ele queria. — O trabalho da polícia te obriga a engolir as emoções, caso contrário você erra. E errar pode custar caro, caro demais.
O silêncio caiu como um golpe. Larissa engoliu em seco, as palavras que tinha preparado evaporando. Viu, talvez pela primeira vez, a rachadura na muralha que Miguel erguera em torno de si.
— Miguel… — murmurou, hesitante.
Ele deu de ombros, mas foi um gesto doloroso.
— Se pareço frio, é porque não suporto a ideia de falhar outra vez.
Um trovão distante sacudiu o telhado cortando o momento. Larissa tremeu sem querer. Miguel, num gesto automático, segurou suas mãos.
Ela ergueu os olhos, surpresa. O sarcasmo tentou vir, mas a voz saiu baixa demais:
— Cuidado, ex-policial. Se continuar assim, vou achar que tem coração.
Miguel sorriu de canto, pela primeira vez sem amargura.
— Só não espalha por aí. Tenho reputação a manter.
O riso dela, breve e entrecortado, era genuíno. Naquele instante, cercados pelo frio e pelo medo que habitavam o sótão, o peso das confissões teceu entre eles uma conexão muda e profunda. Dois fragmentos partidos, colidindo na escuridão, percebendo que suas fissuras se encaixavam com precisão inesperada.
***
O estalo da madeira, o gotejar da chuva. O tempo parecia se esticar, abafado e lento. Larissa não sentiu o frio, apenas a pele eriçada enquanto puxava o casaco, uma armadura inútil contra a intensidade do olhar de Miguel.
Ele estava perto demais. Pela primeira vez, o cheiro de couro molhado e perfume amadeirado parecia preencher o espaço inteiro, quase uma presença física. As palavras que haviam trocado ainda pesavam, mas agora havia algo mais, uma tensão densa e crua, impossível de ignorar.
Foi um impulso. A mão de Larissa se ergueu, tocando de leve o braço dele, um teste, uma forma de confirmar que ele era real. Miguel não recuou. Em vez disso, inclinar-se foi um ato deliberado, lento, até que a única coisa entre eles fosse a respiração que compartilhavam.
O beijo explodiu entre eles. Não foi gentil, nem planejado, mas sim uma descarga elétrica, uma urgência que buscava sufocar o peso das memórias, do medo, da casa. Larissa se agarrou ao colarinho dele, seus dedos enterrados no tecido. Miguel segurou sua nuca com firmeza, como se o mundo estivesse prestes a desmoronar e ele só pudesse segurá-la.
Então, o som veio. Eram passos. Pesados. Cadenciados. Do segundo andar da casa.
O beijo se partiu. O ar entre eles congelou, e o único som era o das passadas secas e rítmicas, vindo de algum lugar abaixo deles.
Mais próximas. Mais lentas.
Larissa arregalou os olhos, a respiração acelerada escapando em nuvens brancas no ar frio. Miguel levou o dedo aos lábios, pedindo silêncio, enquanto guardava a lanterna e já fechava a mão em torno do revólver.
Um estalo, mais alto, a escada rangeu.
E então veio o som que os gelou por completo: uma respiração arrastada, grave, que parecia vir de todos os cantos ao mesmo tempo.
Capítulo 9 – Fuga no Telhado
O primeiro som foi o batente da porta, tremendo. Três batidas secas, como marteladas, reverberaram pelo sótão abafado, sacudindo poeira do teto. Depois, outras, em ritmo acelerado, como se mais de um punho socasse a madeira ao mesmo tempo.
De repente o cheiro de mofo e fuligem misturado ao de cera derretida que impregnava o espaço, tornou a respiração de Larissa um esforço incomum. Junto dela, Miguel procurava um meio de escaparem.
Foi então que uma voz atravessou o barulho — grave, metálica, arrastada, como se viesse filtrada por uma máquina.
— Larissa… Miguel… entreguem o que encontraram. É uma saída sem dor. Vocês sabem do que falo.
O detalhe de ouvir seus nomes naquela casa mergulhou Larissa em um medo mais profundo do que qualquer ameaça física. Seu coração acelerou, batendo alto nos ouvidos. Ela levou as mãos sobre o peito, tentando controlar a respiração, mas cada batida na madeira parecia empurrar o ar para fora de seus pulmões.
Miguel a abraçou, o maxilar travado. Se aproximou de seu ouvido e murmurou, baixo o suficiente para ser ouvido:
— Precisamos sair. Agora.
E então apontou para cima, para a escotilha do teto, onde uma fresta deixava passar um fio de vento gelado.
***
Miguel não esperou resposta. Caminhou tentando não fazer barulho e puxou um caixote de madeira até estar embaixo da escotilha. Subiu e empurrou a portinhola com o ombro. A tampa resistiu como se estivesse pregada ao tempo. Ele rangeu os dentes, forçando outra vez. A madeira cedeu de repente com um estalo alto, que ecoou pelo sótão como um tiro abafado.
As batidas na porta cessaram por um segundo. O silêncio que veio depois foi ainda mais apavorante. Larissa sentiu o sangue gelar nas veias.
— Eles ouviram. — sussurrou, mais para si do que para Miguel.
— Melhor então que a gente se apresse. — respondeu ele, a respiração pesada, apoiando as mãos contra a borda da abertura.
Miguel subiu primeiro, músculos tensos, o corpo desaparecendo na escuridão lá de cima. O vento da madrugada invadiu seu rosto, trazendo o cheiro de telha molhada e fumaça distante de lareira. Por um instante, Larissa se viu sozinha no sótão, cercada pelo rangido da casa e pelas vozes abafadas atrás da porta.
— Vem! — a voz de Miguel veio abafada lá de cima, a mão pronta para puxá-la.
Ela já estava sobre o caixote. O coração disparado, a garganta seca e as mãos tremendo.
— Anda, Larissa. — Miguel estendeu a mão pela abertura, os olhos faiscando impaciência e preocupação. — Agora não é hora de pensar.
Ela hesitou um segundo a mais do que devia. Mas o som de alguém forçando a maçaneta, a fez se lançar para cima, agarrando a mão dele com força. A pele de Miguel estava quente, contrastando com o frio que tomava conta de seu corpo. Ele a puxou com um tranco, o corpo dela deslizando pela borda até estabilizar sobre o telhado.
O movimento a fez soltar um gemido abafado. O casaco raspou na passagem pela escotilha, mas estava fora do sótão.
— Devagar. — Miguel sussurrou, segurando-a pelo braço para estabilizá-la. — Telhas soltas.
Ela o olhou, ofegante, e soltou um riso nervoso.
— Claro… porque cair e quebrar o pescoço ia ser o espetáculo digno dessa noite.
Miguel arqueou uma sobrancelha, mesmo sob a tensão, retrucou. — Se vai cair, pelo menos caia em silêncio.
O sarcasmo dele, naquele instante, deu a ela um instante de alívio.
Atrás deles, no sótão, o barulho recomeçou: a porta arrebentando com um barulho seco, vozes sobrepostas, passos pesados. A perseguição não tinha terminado.
***
O telhado molhado e escorregadio era um inimigo próprio. E o vento rasgava o ar em rajadas geladas, chicoteando o rosto deles com gotículas de chuva fina. Larissa apertou os olhos, o cabelo solto colando-se às têmporas. A escuridão da madrugada parecia ainda mais densa dali de cima, a cidade de Curitiba escondida sob véus de neblina e luzes amareladas que mal atravessavam o véu.
As telhas rangiam sob o peso dos dois, cada passo um risco calculado. Algumas cediam com estalos ocos, outras se soltavam, deslizando telhado abaixo e quebrando no quintal com um barulho que ecoava alto demais. Larissa sentiu os pés escorregarem, Miguel a agarrou pelo cotovelo.
— Segura firme. — a voz dele era um rosnado baixo, quase engolido pelo vento. — Não olha pra baixo.
Ela, claro, olhou. O quintal se abria como um abismo escuro, cheio de sombras de árvores e a mancha irregular do mato molhado. O estômago revirou.
— Ótimo conselho — sussurrou, arfando. — Não olha pra baixo… fácil falar.
Miguel estava focado na varanda inferior, a alguns passos adiante, onde a madeira encharcada formava uma plataforma estreita. Avaliava a distância, os apoios, o tempo que tinham antes que quem estivesse dentro da casa alcançasse o telhado.
Atrás deles, as vozes ecoaram mais fortes. Passos pesados reverberaram de dentro do sótão, como tambores de guerra, aproximando-se da escotilha.
— Eles estão vindo. — Larissa disse, a respiração curta.
Miguel lançou-lhe um olhar rápido, decidido. — Então a gente pula.
Ele não esperou objeções. Mediu, rapidamente, a distância com os olhos e saltou. O corpo atravessou o espaço como uma sombra recortada contra o céu nublado. A madeira da varanda gemeu quando recebeu o impacto, quase cedendo. Miguel rolou no chão molhado, mas se levantou rápido, como se nada mais importasse além do próximo movimento.
Larissa ficou paralisada por um segundo. O coração batia tão rápido que parecia querer sair pela garganta. As pernas tremiam, e a boca tinha o gosto metálico da adrenalina.
— Vem! — Miguel gritou de baixo, estendendo os braços como se pudesse alcançá-la dali.
Ela olhou para trás, e viu mãos saindo pela escotilha, e sem pensar prendeu a respiração, o peito queimando, correu dois passos curtos e saltou.
O mundo girou durante o voo breve. O vento rasgou-lhe os ouvidos, e a sensação de queda foi tão forte que a fez soltar um grito abafado. O impacto veio duro: joelhos e palmas das mão raladas, depois o corpo rolando diminuindo a intensidade.
Miguel a levantou de imediato, as mãos firmes em seus braços.
— Está inteira? — perguntou rápido, mas os olhos já buscavam o próximo caminho de fuga.
— Inteira é exagero… — riu nervosa. — Mas viva, pelo menos.
O barulho de passos sobre o telhado e vozes atrás deles a fez entender: não tinham muito tempo para comemorar.
***
O quintal dos fundos os esperava como uma boca escura. O mato alto, encharcado pela chuva, oscilava com o vento e arranhava o corpo enquanto avançavam. Cada passo era pesado, os sapatos sugados pela vegetação que prendia, como se a casa não os quisesse deixar sair.
Miguel abria caminho, puxando Larissa pela mão, os dedos dela apertando forte. O ar queimava nos pulmões, e o coração dela batia descompassado que abafava o resto dos sons ao seu redor.
Um estampido zuniu próximo aos seus ouvidos. O tiro ecoou pelo quintal, ricocheteando no muro a frente. Não os atingira — mas o aviso era claro. Larissa instintivamente se encolheu.
— Levanta! — Miguel a ergueu pelo braço, voz tensa mas firme. — Eles querem assustar, não matar… ainda.
— Ah, ótimo, isso tranquiliza muito! — ela rebateu, arfando, mas não hesitou em segui-lo.
Chegaram à cerca nos fundos. O arame farpado mostrou toda a ferrugem que adquiriu durante os anos. Miguel passou primeiro, usando o peso do corpo para abrir uma brecha estreita, depois ergueu o arame para Larissa passar. Ela tentou imitar, mas o arame enroscou em sua calça, arranhando-lhe a perna. O ardor foi instantâneo e, o sangue não demorou a aparecer e o corpo inteiro protestar. Mas, em segundos, estavam fora da propriedade, correndo pela rua escura do bairro Mercês, onde postes espaçados lançavam círculos de luz amarelada que mais escondiam do que iluminavam.
As casas vizinhas dormiam em silêncio, janelas fechadas, cortinas pesadas. Era como se ninguém quisesse ver o que acontecia na Casa 92.
Eles correram até onde o fôlego permitiu, ofegantes, sujos, a respiração visível em nuvens curtas no ar gelado. Miguel finalmente diminuiu o ritmo, indicando o carro estacionado a algumas quadras dali.
O caminho até a quitinete de Larissa foi feito em silêncio, cada um preso em seus próprios pensamentos. Ela, com as mãos trêmulas, limpava o sangue que escorria da perna com um lenço de papel que encontrou no porta-luvas. Ele, ainda tenso, dirigia com os olhos fixos na estrada molhada. Nenhum dos dois queria admitir, mas sabiam que estavam em perigo eminente.
Ao chegarem, Larissa trancou a porta com duas voltas de chave e ainda empurrou a pequena estante me madeira maciça contra ela. A quitinete, antes aconchegante e familiar, agora parecia um refúgio precário. O cheiro de lavanda ainda pairava no ar, mas agora se misturava ao odor de chuva trazido pelas roupas encharcadas.
Tiraram os casacos molhados, os sapatos e se largaram no chão, exaustos. Larissa sentia os músculos pulsarem, o corte na perna latejava. Miguel, sentado ao lado, mantinha a mão sobre o coldre, como se o perigo pudesse atravessar a porta a qualquer instante.
O silêncio pesou até Larissa sussurrar, num fio de voz:
— O que é tudo isso que envolve o professor Benevides, Miguel? Deve ser algo muito grande, pois não faz sentido estarem atrás da gente agora.
Ele não a corrigiu, não trouxe racionalidade. Apenas a encarou, e nesse olhar havia a certeza incômoda: ela tinha razão.
Capítulo 10 – No Refúgio da Jornalista
O dia começava a clarear e a chuva fina persistia lá fora, tamborilando contra os vidros do pequeno apartamento de Larissa como dedos impacientes, o som se misturava ao ronco distante de motores que começavam a lotar as ruas. Dentro, o espaço agora parecia trazer tranquilidade. Miguel depois de um banho rápido, transformou a pequena mesa em um mapa mental muito bem montado, o que contrastava com o pijama, um pouco justo, azul-claro com nuvens brancas de Larissa, que vestia.
Depois do banho quente que a fez relaxar um pouco, Larissa se sentou na beira da cama, o tecido gemendo sob seu peso, ergueu a barra da calça do pijama rosa e respirou fundo quando o álcool ardeu contra a pele arranhada. O corpo inteiro doía e não era apenas pelos machucados.
Miguel, de pé, observava o mapa. Com movimentos precisos, espalhou partituras amareladas, fotografias manchadas pelo tempo e as fitas numeradas. O contraste era marcante: parecia um policial ainda em serviço, mesmo dentro do pijama apertado. O rosto dele, iluminado apenas pela lâmpada amarela, tinha sombras profundas ao redor dos olhos — marcas de exaustão e de um cansaço que não vinha apenas da fuga.
Larissa, enquanto fazia os próprios curativos quebrou o silêncio:
— Isso não é interessante, Miguel? Viramos figurantes de um roteiro B de perseguição barata. Só faltou a trilha sonora dramática. — de repente mais séria. — Bem que poderia ser só um filme…
Ele não levantou os olhos dos papéis, mas a resposta veio seca, quase um murro:
— É pior. No cinema alguém grita “corta”. Aqui, ninguém vai gritar nada.
A frase ficou suspensa no ar, mais fria que o vento que insistia em bater na janela.
***
A exaustão ou o medo acabou trazendo a velha Larissa de volta, armada de seu sarcasmo disparou:
— Você tem esse talento irritante de parecer que sempre sabe o que está fazendo. Aposto que até dorme em posição estratégica, igual manual da polícia.
Miguel ergueu os olhos devagar, sem pressa, como se calculasse cada segundo antes de responder. A boca dele esboçou algo entre um sorriso contido e um cansaço antigo.
— E você tem o talento de transformar quase morrer numa piada. Deve ser útil pra disfarçar que está tremendo até os ossos.
Ela arqueou as sobrancelhas, os dedos tamborilaram, nervosos, contra os braços cruzados. Finalmente, sussurrou, quase mais para si mesma:
— Eu não posso me dar ao luxo de tremer.
Miguel ficou imóvel, encarando-a. A rigidez habitual nos ombros se suavizou um pouco. Ele não perguntou mais nada, mas o silêncio dele a pressionou a continuar.
— Na redação… — ela respirou fundo, a voz embargando — …me diziam que eu queria ser protagonista demais. Teve uma matéria… — seus olhos vagaram pelo chão, fixando-se em um ponto imaginário — Insisti tanto que perdi colegas no processo. E por fim nunca publiquei nada que fizesse diferença. Só manchetes rasgadas.
Miguel soltou um suspiro baixo, pesado. Ele colocou um papel que tinha nas mãos sobre a mesa e esfregou o rosto, como se apagasse lembranças com a palma das mãos.
— Bem-vinda ao clube. — A voz saiu rouca. — Parece que fiz a mesma coisa com minha vida depois que perdi meu parceiro.
Larissa o encarou, surpresa. Não esperava que ele abrisse tanto assim. Miguel não parecia o tipo de homem que entregava suas feridas. Mas ali estava ele, olhos cravados na penumbra do quarto, como se confessasse os próprios fantasmas.
Por um instante, não havia farpas. Só o peso de dois corpos carregando o mesmo tipo de fardo, diferentes e iguais ao mesmo tempo.
Larissa quebrou a tensão com uma risada curta, nervosa:
— Ok. Então somos dois fracassados encurralados em uma quitinete. Parece até título de peça de teatro alternativo.
Miguel não conteve um sorriso de canto, rápido demais para se transformar em riso. Mas suficiente para que ela percebesse.
***
Larissa ajeitou-se sobre a cama, puxando as pernas para cima como se quisesse se encolher do próprio mundo. Estava exausta e só queria dormiu, só um pouquinho.
Miguel a observou em silêncio; sentado à mesa, cheia por papéis e fitas como se fossem peças de um tabuleiro. Seu olhar se demorou um pouco mais do que deveria no jeito como ela enrolava, sem perceber, uma mecha de cabelo entre os dedos — gesto repetitivo, quase infantil, de quem luta contra o nervosismo.
Ele pigarreou, como se precisasse disfarçar o instante de atenção excessiva.
— Você vai acabar arrancando o cabelo inteiro, se continuar a fazer isso.
Larissa ergueu o olhar, pronta para uma resposta afiada. Mas se surpreendeu ao notar a expressão dele era de cuidado. Algo sutil, quase imperceptível, mas estava lá.
Ela soltou a mecha devagar.
— Melhor isso do que roer unhas — murmurou, meio sem jeito.
Miguel se levantou, caminhou até a cama, pegou o cobertor e a cobriu. Foi um gesto delicado. Larissa permaneceu imóvel por alguns segundos, surpresa pela ternura escondida no ato.
— Está tentando bancar o cavalheiro? — a ironia saiu sem pensar. — Obrigada.
Miguel deu de ombros.
— Estou só tentando evitar que você fique resfriada. Agora descanse.
Ela sorriu. A quitinete pareceu menos sufocante por um instante.
Miguel a fitava de soslaio, e Larissa, percebendo, desviou os olhos. Mas a imagem dele o cobertor sobre ela, a proximidade de suas mãos roçando de leve seu rosto, permaneceu grudada como um arrepio que não passava.
E, pela primeira vez naquela noite, o silêncio entre eles não era apenas tensão — era também possibilidade.
***
Horas depois a claridade fez Larissa acordar, ela se espreguiçou, quase esquecendo de tudo o que tinha vivido, foi quando seu braço esbarrou em Miguel. Ele dormia profundo virado de costas para ela. Um sentimento que ela não soube definir se formou dentro dela. Deixou um leve sorriso sair, e desceu devagar da cama.
Miguel acordou com o cheiro de café. A mesa estava posta na bancada da cozinha e Larissa o esperava com um semblante leve.
— Bom dia. Venha comer, temos muito o que fazer. E… saco vazio não para em pé – como diziam os antigos. — falou mordendo uma torrada.
***
Mais tarde.
Miguel, já em suas roupas, agora limpas e com cheiro das roupas dela, estava em silêncio, observando cada detalhe, como se buscasse um padrão invisível. Larissa puxou a pilha de partituras para mais perto, tentando organizar o caos sobre a mesa, e foi então que, no meio das folhas, uma fotografia deslizou para fora, caindo de lado sobre o tapete de cor areia que combinava com o sofá de dois lugares.
— Espera — disse Larissa, arqueando as sobrancelhas enquanto a pegava.
A imagem mostrava Roberto ainda jovem, mais magro, com expressão quase reverente, ao lado de um homem de terno claro. Heitor Benevides, inconfundível, sorria levemente para a câmera, os olhos brilhantes.
— Esse aqui… — Larissa apontou para uma terceira figura, em segundo plano, parcialmente desfocada.
Miguel aproximou-se de súbito, arrancando a foto das mãos dela com uma urgência que o traía. Reconheceu de imediato. O maxilar se contraiu, e o silêncio que se seguiu era quase ensurdecedor.
— Garcez — murmurou, a voz mais grave do que o normal.
Larissa piscou, confusa.
— Quem?
Miguel respirou fundo, apoiando as mãos sobre a mesa.
— Inspetor Garcez. Ele foi o responsável pela investigação oficial do caso Benevides. — Pausou, os olhos fixos na fotografia. — E também foi o homem que fez questão de enterrar tudo.
O peso da revelação caiu sobre a quitinete como um bloco de concreto. O frio pareceu penetrar através das paredes, o zunido distante da cidade se tornou abafado.
Larissa sentiu o coração acelerar, mas não conseguiu soltar uma palavra. A imagem dos três juntos — Roberto, Heitor e Garcez — formava uma corrente impossível de ignorar.
Miguel largou a foto sobre a mesa, o papel tremendo levemente com o impacto.
— Se ele está nisso desde o início… então nada do que aconteceu foi acaso.
O silêncio que se seguiu não foi preenchido pelo som do vento batendo contra a janela.
Larissa passou a mão pelo rosto, tentando organizar os pensamentos.
— Então… o homem que deveria investigar era parte do jogo.
Miguel ergueu os olhos para ela. E no fundo daquele olhar cansado havia algo mais: fúria.
— E se ele ainda estiver por perto, Larissa… não estamos só cavando um caso antigo. Estamos cutucando um ninho de cobras.
A frase ficou suspensa no ar. Nenhum deles ousou responder.
A fotografia permaneceu sobre a mesa, iluminada apenas pela luz amarelada da lâmpada fraca — três rostos congelados no tempo, unidos por segredos que agora ameaçavam engolir quem ousasse descobri-los.
Capítulo 11 – O Nome do Chefe de Polícia
O tic-tac insistente de um relógio antigo ecoava dentro da memória de Miguel, como se o tempo tivesse parado naqueles corredores de delegacia. Não era um relógio qualquer: os ponteiros estavam sempre errados, adiantados ou atrasados, mas o som era preciso, implacável, como uma respiração metálica que nunca cessava.
O cheiro vinha em seguida, quase sufocante — cigarro barato misturado ao café requentado que descansava em copos de vidro manchados. A fumaça pairava no ar, tão densa que parecia um véu acinzentado entre os homens de farda. Miguel lembrava do uniforme ainda novo em seu corpo, da sensação incômoda de estar tentando parecer mais seguro do que realmente era.
E, no centro daquela cena, estava ele: Garcez.
O inspetor ocupava a sala como se fosse parte da mobília pesada de madeira escura. O paletó amassado, a gravata frouxa e o olhar frio faziam dele uma presença mais sufocante que a fumaça. A voz era grave, arrastada, carregada de um autoritarismo que não precisava de gritos. Garcez falava pouco, mas cada palavra soava como sentença.
— Esse caso não tem futuro, rapaz. — Miguel ouviu a frase se repetir, como se fosse agora. — Você aprende rápido que algumas portas, é melhor manter fechadas.
Na lembrança, ele quis responder. Quis contestar. Mas o silêncio foi a única resposta. E Garcez, com um sorriso curto e amargo, bateu o cinzeiro sobre o papel do inquérito, apagando não só a brasa do cigarro, mas também o caso inteiro.
O estalo de uma tecla trouxe Miguel de volta.
O som vinha das mãos de Larissa sobre o teclado, rápida, nervosa, iluminada apenas pela luz azulada do laptop em sua quitinete. Mais uma vez a garoa batia contra a janela, arrastada pelo vento de Curitiba, e a cidade lá fora parecia mais distante do que nunca.
Miguel piscou, afastando a memória, e viu Larissa inclinada sobre a tela, mordendo o lábio com concentração. Ela não percebia, mas a imagem dela contrastava com a lembrança de Garcez de forma cruel: jovem, determinada, mergulhando em algo que poderia consumi-la.
Ele suspirou fundo, mas não disse nada. Apenas observou, sabendo que o nome do inspetor, agora revelado, não era só uma peça do quebra-cabeça — era um fantasma que ele nunca conseguiu enterrar.
***
A luz do laptop recortava o rosto de Larissa em tons azulados, destacando as olheiras. O som constante da garoa no vidro criava um fundo rítmico, como se a própria cidade de Curitiba estivesse prendendo a respiração junto deles.
Ela digitava com rapidez, as unhas batendo secas contra o teclado, e vez ou outra soltava um resmungo baixo, como se conversasse consigo mesma. Miguel, sentado de frente para ela à mesa, observava em silêncio. As partituras estavam ali, mas sua atenção não estava nos papéis — estava no jeito como Larissa franzia o cenho, inclinava a cabeça, mordia o lábio com força.
— Achei. — A voz dela quebrou o silêncio, um misto de excitação e medo. — Olha isso.
Miguel se aproximou, apoiando as mãos nas bordas da mesa. Na tela, artigos antigos em PDF, recortes digitalizados de jornais que pareciam esquecidos até pela memória da cidade. Heitor Benevides aparecia em reportagens dos anos 80: professor de psicologia da música na UFPR, financiado por projetos misteriosos que falavam em “estudo da influência de frequências sonoras sobre o comportamento humano”.
— Psicologia da música… — Larissa murmurou, passando o scroll. — Parece inofensivo, mas aqui — apontou para um trecho apagado, mal legível — fala em “respostas adversas em voluntários”. E, depois… O projeto desaparece. Não encontrei mais nada sobre o assunto.
Miguel estreitou os olhos, o maxilar duro.
— Isso não me surpreende. Arquivar, enterrar, silenciar. É a especialidade de gente como Garcez.
Larissa virou-se devagar, encarando-o.
— Então é verdade. Você já sabia. Por isso está comigo nisso.
Miguel sustentou o olhar. O silêncio dele era um escudo, mas também uma confissão. Larissa bufou, empurrando a cadeira para trás, o rangido agudo ecoando no pequeno apartamento.
— Você se aposentou porque não conseguiu enfrentar gente como ele, não foi? — A pergunta veio com veneno.
Miguel sentiu o golpe.
— Me aposentei porque Garcez me fez acreditar que eu não era capaz — respondeu com frieza. — Só que hoje… — Ele parou, respirou fundo. — Hoje percebo que talvez eu estivesse errado.
Larissa piscou, surpresa com a franqueza dele.
O vento bateu forte contra a janela, fazendo o vidro tremer. Lá fora, um carro passou devagar demais pela rua, e ambos instintivamente se voltaram para a janela. A cidade, envolta na garoa, parecia observá-los de volta.
***
Miguel fechou os olhos por um instante. O barulho da garoa constante contra as janelas parecia se transformar em outro som, distante no tempo: o cheiro de cigarro barato impregnava o ar, misturado ao odor de café requentado numa sala abafada de delegacia.
Garcez estava lá. Sempre estava. Sentado atrás da mesa, camisa aberta no colarinho, gravata frouxa, a fumaça do cigarro subindo lenta enquanto ele assinava papéis sem olhar duas vezes. Miguel, jovem e ainda cheio de certezas, questionara o porquê de arquivar mais um caso — um desaparecimento no Pilarzinho, uma garota que nunca voltou para casa. Garcez apenas ergueu os olhos, frios, e dissera:
— Algumas coisas são melhor não cutucar. Você ainda é novo demais pra entender.
Miguel se lembrava do nó no estômago, da raiva que engoliu, e da sensação de covardia que o acompanhou desde então.
— Ele sempre fazia isso? — A voz de Larissa o puxou de volta ao presente.
Miguel abriu os olhos devagar. Ela estava olhando para ele, com o laptop ainda aberto sobre a mesa, a tela refletindo artigos que citavam Heitor Benevides em linguagem quase clínica.
— Fazia. — Miguel respondeu, seco. — Enterrava investigações. Às vezes sumia com provas. Às vezes… com pessoas.
Larissa franziu a testa.
— Pessoas?
— Me fez acreditar que muitas destas coisas eram culpa minha, que eu não tinha agido de forma correta.
A lembrança da garota do Pilarzinho ainda lhe corroía. O rosto dela — que ele só vira em uma foto borrada no boletim de ocorrência e depois morta — misturava-se agora ao rosto de Larissa sob a luz azulada do computador. Ele não conseguiu evitar o pensamento de que, se não fosse mais cuidadoso dessa vez, poderia perdê-la também.
Larissa percebeu o silêncio dele e decidiu preencher o espaço com palavras.
— Aqui fala que Heitor defendia a ideia de que certas frequências poderiam “abrir portais da percepção”. Isso soa… esotérico demais.
— Não duvide. — Miguel rebateu, a voz baixa. — A polícia encontrou lares destruídos por coisas desse tipo.
Ela ergueu uma sobrancelha, meio irônica.
— E você acredita em portais invisíveis?
Miguel deu um meio sorriso cansado.
— Acredito em pessoas capazes de acreditar. E isso já basta pra ser perigoso.
Ela entendeu e uma sombra de empatia surgiu. Larissa voltou a digitar, mas suas mãos estavam mais lentas.
Enquanto ela lia trechos de anotações acadêmicas e artigos esquecidos, Miguel se deixou afundar novamente em lembranças. A imagem de Garcez, com a voz grave e o olhar frio, retornava como um fantasma. Lembrava-se de como outros policiais se submetiam a ele. E lembrava-se, sobretudo, da própria covardia em não ter desafiado o sistema, de ter acreditado naquele desgraçado.
“Se eu tivesse insistido…”, pensou, mas não completou a frase. O arrependimento era uma ferida que nunca cicatrizara.
O silêncio se instalou, o barulho do som do teclado preenchia o quarto. Até que Larissa murmurou:
— Se Garcez realmente enterrou esse caso… significa que ele ainda pode estar por perto. Que ele ainda pode querer manter ele enterrado e, a gente também.
Miguel a encarou, e por um instante não viu apenas a jornalista teimosa: viu a garota do Pilarzinho, viu tantas outras vítimas invisíveis, que sabia que existiam e sentiu a urgência crescer dentro dele.
— É por isso que você precisa ter cuidado. — Ele falou firme, quase num sussurro. — Eu não posso falhar de novo.
Larissa arqueou uma sobrancelha.
— Eu sei que você vai me salvar. — Falou na tentativa de amenizar a tensão.
Mas no fundo o medo a cercava.
***
O relógio digital na cabeceira da cama da quitinete piscava 02h47 em vermelho, como se o próprio tempo quisesse marcar sua presença incômoda. O cheiro de café recém-passado preenchia o ambiente, a chuva tinha cedido lá fora, e o silêncio entre eles parecia cada vez mais denso, como se pudesse ser cortado com uma faca.
Miguel organizou os papéis sobre a mesa, separando as fotos e as partituras. Seu olhar endurecido contrastava com a respiração pesada, quase contida. Ele estava tomando impulso para algo que sabia ser inevitável, mas ainda resistia em dizer.
— Você está pensando nele, não é? — Larissa quebrou o silêncio, fechando o laptop. — Garcez.
Miguel demorou alguns segundos antes de responder.
— Estou pensando em como ele sempre esteve um passo à frente. E em como sempre me fez acreditar que lutar contra ele era inútil.
Larissa inclinou-se para frente, os cotovelos apoiados na mesa, o olhar firme.
— Mas não é mais. Não com o que temos agora.
Ele soltou uma risada seca, sem humor.
— O que temos? Partituras rabiscadas, fitas que ninguém vai levar a sério e um punhado de fotos antigas. Contra um homem que enterrou casos inteiros, manipulou provas e que provavelmente ainda tem gente devendo favores a ele.
— Então vamos deixar que enterre tudo de novo? — Larissa rebateu. — Fingir que nada disso existe?
O silêncio que se seguiu foi diferente dos anteriores: cheio de tensão, mas também de algo mais profundo. Miguel encarou Larissa, e não viu a repórter impetuosa. Viu alguém que, assim como ele, carregava o peso de não ser levada a sério. Com o peso de lutar contra algo maior que si mesma.
Ele respirou fundo.
— Se formos atrás dele, não tem volta.
— Você acha que ainda tem volta depois de tudo isso? — ela respondeu, erguendo a foto em que Garcez aparecia ao lado de Heitor e Roberto. — Eles já estão nos caçando.
Miguel permaneceu imóvel por um momento, sentindo a própria convicção ser corroída pela verdade simples na voz dela. Finalmente, fechou os olhos e murmurou:
— Então vamos até o fim.
Larissa arqueou um sorriso rápido, que desapareceu quase no mesmo instante. Ela sabia que aquela decisão não era uma vitória, mas, talvez, uma sentença.
Miguel recolheu os papéis, guardando-os com a precisão de quem prepara armas antes de uma batalha. A cada movimento, o som dos dedos dobrando as folhas, o fecho do zíper da pasta, o estalo seco da fita adesiva, parecia alto demais.
Antes de se levantar, ele olhou de novo para Larissa, e havia naquele olhar um misto de irritação, respeito e uma vulnerabilidade que raramente deixava escapar.
— Você não faz ideia do que está pedindo.
Ela segurou o olhar dele sem desviar.
— Faço, sim. Mas alguém precisa trazer isso a tona.
Eles estavam decididos e o próximo passo seria encarar Garcez.
Capítulo 12 – O Encontro com Garcez
A chuva fina escorria pelos fios de energia, criando linhas prateadas que riscavam a tarde de Curitiba. As luzes amareladas dos postes começavam a se acender refletindo os paralelepípedos molhados do Juvevê, como se o bairro inteiro respirasse uma calma silenciosa e natural. Larissa observava pela janela do carro parado, o motor desligado, o frio do vidro condensando sua respiração em pequenos borrões efêmeros.
— Será que um dia o sol vai voltar? — falou ela enquanto observavam a casa de Garcez.
À frente, o sobrado de Garcez erguia-se com imponência discreta: fachada clara, impecável, o jardim meticulosamente aparado, como se cada folha tivesse sido cortada sob ordens militares. A casa tinha uma ordem quase artificial, perturbadora em sua perfeição. Não havia sinais de vida — nenhuma cortina movida, nenhum cachorro latindo, nenhuma sombra nos vidros.
Miguel permaneceu em silêncio, mas seus dedos batiam ritmados no volante, traindo a tensão que o rosto austero tentava disfarçar. Ele conhecia aquele bairro, aquelas ruas largas, aquela calma que não era calmaria — era controle. Na época da polícia, já havia ido ali uma vez, para uma reunião que preferia esquecer. O gosto amargo da lembrança retornava à boca junto com a secura metálica da ansiedade.
— Não parece a casa de um aposentado qualquer — Larissa murmurou, ajeitando o casaco no corpo, a voz carregada de ironia, mas com o nervosismo latejando nas entrelinhas. — Tá mais para covil de um general cansado.
Miguel olhou para ela, medindo a determinação nos olhos que brilhavam mesmo sob a luz mortiça do poste. Finalmente, soltou em tom grave:
— Ainda dá tempo de voltar.
— Ainda dá tempo de parar de repetir isso — ela rebateu, cruzando os braços, o maxilar tenso.
Um trovão distante reverberou sobre os telhados, lembrando que a tempestade ainda rondava a cidade. Miguel desligou o travamento das portas e respirou fundo.
— Então vamos.
Quando chegaram ao portão ele se destrancou antes mesmo de apertarem a campainha. Ao atravessarem o jardim, o cheiro de grama molhada misturou-se ao das Hortênsias espalhadas simetricamente. A porta estava semiaberta.
Garcez já os esperava.
***
O interior do sobrado parecia uma cápsula fora do tempo. O cheiro de madeira encerada impregnava o ar, misturado a um toque sutil de tabaco e whisky caro. Cada móvel reluzia com o brilho de polimento recente: estantes de madeira escura, livros alinhados demais, quadros discretos de paisagens que não transmitiam emoção alguma. Um ambiente pensado para impor respeito — ou intimidar.
Garcez aguardava no centro da sala, de pé, apoiado em uma bengala que mais parecia acessório de pose do que necessidade real. O terno cinza escuro, cortado sob medida, contrastava com o cabelo ralo e bem penteado para trás. O rosto endurecido pelo tempo mantinha a mesma rigidez que Miguel lembrava, mas os olhos — profundos, escuros — tinham um cansaço cínico, de quem já viu e fez demais para se importar.
— Eu sabia que viriam — disse, com a voz grave, arrastada, como se cada palavra fosse escolhida para pesar.
Larissa e Miguel não se mexeram. Apenas se encararam rapidamente antes de cruzar o espaço até a mesa central, onde dois copos já os aguardavam, ao lado de uma garrafa de whisky aberta.
— Não bebemos com desconhecidos — Larissa disse seca, recusando o gesto que Garcez fez em direção aos copos.
— Não sou desconhecido — ele rebateu, com um meio sorriso. — Pelo menos não para o seu amigo aqui.
Os olhos de Larissa se voltaram para Miguel, que permanecia firme, mãos nos bolsos da calça jeans. O silêncio dele falava mais do que qualquer explicação.
Garcez encheu apenas o próprio copo, o líquido âmbar tilintando contra o cristal. Sentou-se em uma poltrona de couro, o ranger baixo do assento ecoando na sala.
— Vocês querem respostas — disse, bebendo um gole demorado. — Mas vieram ao lugar errado, não tenho nada para dizer.
Larissa o encarou, o olhar cortante, voz controlada, e afiada como lâmina:
— Tenho certeza que você tem muito a dizer.
Um breve silêncio se instalou. O tique-taque do relógio antigo na parede se impôs, marcando um tempo quase opressor. Miguel observava tudo em alerta, cada movimento do inspetor, cada desvio do olhar.
— Você continua insolente, Miguel — Garcez murmurou, sem encarar diretamente. — Mas vejo que encontrou uma parceira à altura.
— E você continua manipulador — Miguel respondeu, a voz grave e contida. — Estamos aqui porque os fantasmas que você arquivou ainda andam soltos.
Os olhos de Garcez finalmente o encararam, frios, avaliando, como se pesasse a utilidade deles em seu próprio jogo.
— Fantasmas… — repetiu, com um leve deboche. — Não foi isso que matou Heitor Benevides?
Larissa rebateu.
— Ora, não nos faça rir.
Garcez ergueu o copo, girando o whisky lentamente.
— Ambição. Ingenuidade. E gente poderosa demais para ser contrariada.
O silêncio seguinte foi cortante. Larissa sentiu um arrepio subir pela espinha, pelo modo como Garcez falou, sem remorso, sem peso, como quem descreve um fato inevitável.
***
O gosto do cigarro ainda queimava na boca quando a ordem chegou. Garcez lembrava bem daquela noite de 2008: a delegacia quase vazia, o teto gotejando em silêncio e o ponteiro do relógio travado nos mesmos minutos há semanas. Ele estava sozinho na sala de madeira escura, cercado por pilhas de processos que jamais teriam solução.
A pasta do Caso Benevides repousava aberta à sua frente, folhas amareladas com cheiro de mofo. Fotografias de partituras rabiscadas, declarações confusas de vizinhos, e o olhar quase febril do professor nas fotos da universidade. Era, no fundo, um caso que não queria tocar. Chamava atenção demais. O tipo de atenção que não trazia mérito, só problemas.
Foi quando a porta se abriu. Um homem engravatado — não um policial, mas alguém de fora, com sapatos caros que rangiam contra o piso frio — entrou sem pedir licença. Não se apresentou. Apenas deixou um envelope pardo sobre a mesa, pesado demais para ser apenas papel.
“Esse caso morre aqui”, disse, com voz calma e gelada. “Você arquiva. Oficialmente, loucura. Extraoficialmente, silêncio. O senhor Benevides já passou do limite. E não é do interesse de ninguém que suas ideias encontrem público.”
Garcez quis retrucar, dizer que não era assim que se fazia na polícia, mas a garganta secou. O peso do envelope falava mais alto do que qualquer princípio. Quando abriu, viu não só dinheiro, mas uma passagem para a chefia — o empurrão que precisava para sair do anonimato da repartição.
Naquela noite, acendeu outro cigarro, observou a fumaça subir lenta e tomou a decisão que o perseguiria para sempre: enterrou Benevides junto com a própria consciência.
E, no fundo, sempre se perguntou — teria sido por medo ou por conveniência?
***
Garcez pousou o copo com calma sobre a mesinha lateral, o som do cristal contra a madeira encerada ecoando mais alto do que deveria. O gesto, simples, fez Larissa perceber o quanto o silêncio daquela sala era denso, sufocante.
— Vocês acham que Heitor era um mártir — começou, recostando-se na poltrona. — Mas ele era só um homem… um homem que acreditava demais em teorias perigosas.
Larissa se manteve firme, os olhos fixos nele.
— Perigosas pra quem?
O homem desviou o olhar, fitando um dos quadros na parede — uma paisagem cinzenta, árvores sem folhas.
— Pra ele mesmo. Pra qualquer um que resolvesse ouvir o que não devia.
Miguel deu um passo a frente, a voz grave interrompendo o jogo de evasivas:
— Você sabia o que estavam fazendo com ele. Sabia que não era apenas “imaginação doentia”.
Os olhos de Garcez se estreitaram.
— Eu sabia que, quanto mais ele falava, mais gente importante ficava nervosa. E nervosos, esses homens, não perdoam.
Larissa apertou os lábios, contendo o ímpeto de retrucar. Algo naquela frase tinha um peso quase físico. Pessoas poderosas. Nervosas. Homens que não perdoam. Ela se sentiu enojada.
— Então você silenciou Heitor — disse ela, voz baixa, mas cortante.
Garcez respirou fundo, como quem já esperava a acusação.
— Eu não silenciei ninguém. Recebi ordens. E ordens são… obrigações, não escolhas.
O silêncio que seguiu era espesso. O tique-taque do relógio parecia zombar dos três, marcando cada segundo em que ninguém ousava piscar.
Miguel quebrou a quietude, cada palavra cuspida com dificuldade:
— Você sempre foi bom em obedecer, Garcez. Arquivar, enterrar, maquiar relatórios. Mas nunca foi bom em cumprir com o seu dever de proteger gente inocente.
Os olhos de Garcez finalmente brilharam com algo que parecia raiva contida.
— Você acha que sabe o que é proteger? — a voz dele ficou mais grave, mais rouca. — Você nunca teve que escolher entre obedecer e morrer.
Larissa percebeu a fissura. Havia ali mais do que cinismo. Havia culpa.
Ela puxou um dos papéis da pasta que trouxera, mostrando-a para Garcez. Uma das fotos antigas de Heitor, em pé diante de um piano, expressão séria, ao lado de alunos. Entre eles, Roberto.
— E esse aqui? — perguntou ela, quase em desafio. — Ele sobreviveu.
Garcez encarou a foto por alguns segundos. A mão buscou pelo copo, mostrando um tremor quase imperceptivelmente.
— Roberto… — murmurou, quase como se o nome tivesse gosto amargo. — Ele não sobreviveu. Ele se transformou.
O coração de Larissa disparou. Miguel cruzou os braços na intenção de se conter.
— O que quer dizer com isso? — Miguel forçou a pergunta.
Garcez deixou escapar um suspiro, apoiando a bengala no joelho.
— Roberto não desistiu do que Heitor começou. Ele acredita que pode… continuar. Mas a mente dele não é estável. O que vocês acham que sabem sobre Benevides não é nada perto do que Roberto está tentando. Mas para os poderosos ele não passa de um lunático.
Larissa sentiu o estômago se contrair. O nome de Roberto sempre vinha acompanhado de enigmas, frases truncadas, fugas covardes. Agora, a palavra usada por Garcez — “transformou-se” — parecia abrir uma porta para algo mais sombrio.
— Se ele está vivo e ativo… — Larissa começou, mas Miguel a interrompeu, a voz dura:
— Então ele não é apenas um sobrevivente. É uma ameaça.
Garcez não respondeu. Apenas levou o copo aos lábios, o whisky tremendo levemente com o movimento, antes de beber num gole seco.
***
O silêncio na sala se tornara quase insuportável. A luz amarelada do abajur fazia sombras longas nas paredes, distorcendo o rosto de Garcez como se fosse máscara de teatro. Larissa a pasta com os documentos apertados contra o peito. Miguel mais uma vez com as mão nos bolsos da calça, lutava para manter o controle.
Garcez soltou uma risada curta, sem humor.
— Vocês acham que estão caçando fantasmas. Mas fantasmas são fáceis. O que vocês enfrentam é… carne e sangue.
Larissa engoliu em seco.
— Então diga de uma vez. O que Heitor descobriu?
Garcez respirou fundo, fechou os olhos por um instante, como se escolhesse palavras num campo minado. Quando falou, a voz veio mais baixa, arrastada:
— Heitor não era apenas um professor obcecado. Ele encontrou um jeito de usar a música para acessar… aquilo que não deveria ser acessado. Portas na mente. Portas que, uma vez abertas, não fecham mais.
A pele de Larissa se arrepiou inteira. Miguel franziu o cenho, mas não interrompeu.
— Eu recebi ordens — continuou Garcez, a mão trêmula sobre a bengala — para arquivar, calar, destruir qualquer pista. Não porque fosse loucura, mas porque era perigoso demais para ser conhecido.
Larissa sussurrou, quase sem perceber que falava:
— E Roberto?
O nome quebrou a frágil barreira de contenção em Garcez. Ele ergueu os olhos, e por um segundo pareceu mais velho do que nunca, carregado pelo peso de décadas de silêncio.
— Roberto se agarrou ao trabalho de Heitor como um órfão a um túmulo. Mas… ele não tem o mesmo freio. O mesmo medo. Onde Heitor hesitava, Roberto avança.
Miguel cerrou os dentes.
— Avança em quê, Garcez?
O chefe de polícia inclinou-se para frente, a sombra cobrindo parte do rosto, a voz grave quase num sussurro:
— Em abrir a porta. Ele acha que pode terminar o que Heitor começou… mas distorce tudo. Ele está transformando a ciência, em um culto, sua mente está se perdendo e isso é perigoso.
Larissa sentiu o ar rarefeito, como se a sala tivesse encolhido.
— Está dizendo que Roberto é… pior?
Garcez soltou um suspiro longo, quase um gemido.
— Muito pior. Porque não é mais sobre entender. É sobre controlar. Manipular. E ele já tem gente do lado dele. Mais do que vocês imaginam.
O coração de Larissa batia acelerado. Miguel trocou um olhar com ela, e naquele instante nenhum dos dois precisou de palavras: estavam diante de algo maior, mais vivo, mais perigoso do que tinham suspeitado.
Garcez pegou o copo de whisky, girou o líquido âmbar e murmurou, quase para si mesmo:
— Vocês ainda têm escolha. Podem largar tudo e ir embora. Ou podem continuar e descobrir como termina. Mas aviso… quem continua não volta o mesmo.
A última frase ficou suspensa no ar, tão densa quanto a fumaça imaginária de cigarros que já não existiam naquela sala.
Larissa e Miguel permaneceram imóveis, o silêncio pesando como sentença. Não havia mais volta.
***
A casa de Garcez estava mergulhada em penumbra. A madeira encerada ainda exalava o cheiro forte do produto recém-passado pela empregada, mas o ambiente tinha outra fragrância: o whisky caro no copo de cristal que ele girava na mão, deixando o líquido âmbar refletir os últimos filetes de luz da luminária.
Na estante, entre livros jurídicos e troféus de honra ao mérito, repousava uma pasta antiga. O couro estava gasto, e o elástico que a prendia tinha perdido a firmeza há anos. Garcez a puxou com um gesto lento, quase cerimonial, e dela retirou um recorte amarelado de jornal:
“Professor Benevides encontrado morto em circunstâncias suspeitas. Polícia aponta distúrbios emocionais.”
Ele passou o dedo pelo papel, sentindo a aspereza frágil das décadas. Aquele texto era quase um epitáfio — não só de Benevides, mas da sua própria inocência.
Apoiando-se no encosto de uma poltrona, olhou o recorte por longos segundos. Os olhos, que tantos anos intimidaram subordinados, agora refletiam apenas cansaço.
— Eu fiz o que tinha de ser feito — murmurou, como se falasse a um interlocutor invisível.
Bebeu um gole de whisky, que pareceu mais amargo que o normal. O silêncio da sala o engoliu em seguida, pesado demais. No fundo, sabia que repetir aquela frase não mudava nada. Mas era a única forma de continuar acreditando que ainda tinha algum controle sobre a própria história.
Capítulo 13 – O Casarão do Pilarzinho
Semanas se arrastaram desde o confronto com Garcez. O caso parecia ter explodido nas sombras de Curitiba e, ao mesmo tempo, escorrido pelos dedos da polícia como água fria. Roberto desaparecera como pó no vento — nenhum endereço, nenhum conhecido disposto a falar, nenhum rastro confiável.
As buscas se transformaram em uma força-tarefa: homens à paisana espalhados em bares do Centro Cívico, patrulhas discretas rondando o Juvevê, relatórios noturnos sobre avistamentos improváveis. Cada vez que o telefone tocava, Miguel prendia a respiração, só para ouvir mais uma pista vazia. A frustração era uma febre silenciosa, crescendo a cada dia.
Larissa, no entanto, não conseguia se dar por vencida. A quitinete se tornara em uma trincheira de papéis: partituras, anotações, recortes de jornais amarelados, fotos de Benevides e de seus alunos. O cheiro de café se misturava ao da tinta das impressões. Sentada no chão, iluminada apenas pelo abajur inclinado, ela percorria com o dedo os traços da música que se repetiam como uma obsessão. Foi então que reparou nos símbolos escondidos entre as claves e compassos — não eram erros de grafia, mas marcas deliberadas. Pequenos sinais, curvos e geométricos, que se repetiam como coordenadas.
Chamou Miguel com a voz excitada e trêmula:
— Olha isso… não entendo muito sobre notas musicais, mas isso, deliberadamente, não são notas.
Ele franziu o cenho, primeiro descrente, depois intrigado. Um dos símbolos lembrava o desenho de uma curva de estrada; outro, o contorno de um vale.
— Não é possível. — falou incrédulo, já buscando por mapas da cidade no computador.
Cruzando com mapas antigos de Curitiba, chegaram à dedução inevitável: Pilarzinho. Mais especificamente, um terreno em nome de Alda Benevides, esposa falecida do professor.
A revelação correu pelos canais da polícia como fogo. Naquela mesma noite, viaturas sem sirene se espalharam pelas ladeiras estreitas do bairro. O casarão isolado, escondido entre árvores altas, surgiu como um fantasma chamado de volta ao presente.
Era ali que terminava a espera. E onde, finalmente, Roberto seria encontrado.
***
A madrugada descia sobre Curitiba como um véu pesado de neblina. A cidade dormia em silêncio quebrado apenas pelo som distante de pneus na pista molhada e pelo farfalhar das árvores que guardavam o bairro Pilarzinho. O casarão surgia no alto de uma ladeira estreita, escondido por muros de vegetação densa, as copas das araucárias erguendo-se como sentinelas antigas.
Dentro do carro parado a poucos metros do portão enferrujado, Larissa apertava entre os dedos a última folha da partitura carbonizada que haviam recuperado. O papel tremia pela inquietação que dominava seus músculos. O desenho no canto inferior — os símbolos quase indecifráveis, entre nota musical e inscrição ritualística — parecia apontar diretamente para aquele endereço.
Miguel, ao volante, não tirava os olhos do casarão. As mãos repousavam no volante, mas os dedos batiam um ritmo seco, quase militar, que denunciava sua tensão. Do rádio preso ao cinto de um dos agentes no lado de fora, vinham vozes abafadas: ordens curtas, códigos, uma contagem regressiva.
— Ainda dá tempo de você sair daqui — ele disse, a voz baixa, sem virar o rosto para ela.
— Você já sabe a resposta. — ela respondeu.
O olhar dele, finalmente, a encontrou. Por trás da rigidez havia preocupação. Talvez medo. Ela desviou primeiro, voltando os olhos para o casarão, como se assim pudesse negar a vulnerabilidade que surgia entre eles.
A porta foi arrombada com um estrondo, e o cheiro de madeira velha, pó e mofo escapou pelo vão como um hálito de caverna. Lanternas cortaram a escuridão, revelando paredes descascadas, tapeçarias em frangalhos e móveis carcomidos pelo tempo.
Larissa e Miguel saíram do carro e se aproximaram, mantendo certa distância da entrada. Os policiais entravam em formação, gritos de comando atravessando os corredores. O som dos passos reverberava pelo casarão como se ecoasse em ossos.
O primeiro cômodo parecia uma sala de visitas de tempos passados: cortinas pesadas, agora apenas panos puídos pendendo dos varões; retratos de família desbotados, com olhos que, à luz das lanternas, pareciam seguir quem passava; e um piano de cauda no canto, tampo aberto, teclas quebradas, cobertas de pó e manchas escuras que lembravam ferrugem.
Larissa estremeceu. Não era ferrugem.
Miguel percebeu e puxou-a pelo braço, afastando-a do instrumento.
Eles precisaram colocar máscaras, pois uma mistura nauseante de vela derretida, ferro oxidado e algo mais orgânico, úmido, que lembrava o odor da decomposição pairou no ar.
Nos corredores, símbolos riscados a carvão nas paredes se repetiam como mantras visuais. Alguns lembravam compassos musicais, outros inscrições rituais. Havia papéis queimados espalhados pelo chão, fragmentos de partituras que pareciam ter sido destruídas às pressas.
— Ele estava perto de terminar algo — Larissa murmurou, abaixando-se para pegar um pedaço ainda legível.
— Ou perto de perder de vez a cabeça — Miguel retrucou, mas sua voz não tinha convicção.
No cômodo central, eles o encontraram.
Roberto estava de joelhos no chão, cercado por velas quase apagadas, o corpo encharcado de suor. A barba desgrenhada colava-se ao rosto, os olhos vermelhos faiscavam de febre ou delírio. Os lábios murmuravam uma melodia incompreensível, mas constante, como um mantra sem pausa. As mãos se moviam no ar, dedilhando um piano invisível.
Policiais o cercaram e um deles se aproximou, estendendo as algemas. Roberto ergueu o rosto e, com uma força de voz que parecia impossível para aquele corpo exausto, gritou:
— A música não cala! Ela abre portas!
O grito reverberou nas paredes, atravessando cada pessoa no cômodo como uma vibração física. Larissa sentiu o peito vibrar, como se a própria caixa torácica fosse instrumento. Miguel a abraçou, firme.
— Ele está fora de si — disse um dos agentes.
Mas Larissa não tinha certeza. Não era apenas insanidade. Era convicção.
Roberto se debateu, quase derrubando dois homens que tentavam contê-lo. Só parou quando a agulha da seringa entrou em seu braço. O corpo relaxou aos poucos, a voz murchando até virar sussurro. Antes de desmaiar, ele ainda murmurou:
— Não fechem… a última porta…
O silêncio que se seguiu pesou mais que o grito.
Larissa percebeu que estava segurando o braço de Miguel com tanta força que suas unhas haviam deixado marcas. Ela soltou devagar, tentando recuperar a compostura.
A ambulância foi chamada, e logo Roberto foi levado, algemado, entre os ecos de passos e vozes abafadas. Restaram apenas eles, os policiais recolhendo papéis queimados, o casarão respirando como um organismo velho e cansado.
No chão, perto do círculo de velas, havia uma pilha de partituras carbonizadas. Larissa abaixou-se, afastando as cinzas com cuidado, até encontrar uma folha ainda parcialmente intacta. As notas formavam um desenho incompleto, um compasso interrompido no meio — mas suficiente para sugerir que algo estava para se concluir.
Ela olhou para Miguel, o coração disparado.
— Ele estava perto. Perto demais.
Miguel pegou a folha das mãos dela, os olhos fixos no papel. Seu rosto estava tenso, a mandíbula cerrada.
— Ele não estava só brincando de ocultismo. Ele acreditava. E quase conseguiu.
O vento atravessou as janelas quebradas, espalhando cinzas pelo ar como pequenas sombras. Larissa apertou o dossiê contra o peito, tentando conter o frio que subia pela espinha.
Ela sabia, com uma certeza que não queria admitir em voz alta, que o silêncio da Casa 92 jamais fora apenas sobre um crime isolado. Era sobre algo que ainda não havia terminado.
E, agora, a porta que Roberto tentara abrir parecia mais próxima do que nunca.
Capítulo 14 – O Silêncio Depois da Música
A manhã nascia cinzenta sobre Curitiba, mas havia uma claridade morna que se insinuava entre os prédios e os galhos das árvores da Praça Tiradentes. O vento tinha dado uma trégua e a probabilidade de sol era otimista. Os pombos arrulhavam nervosos em bandos, levantando voo em ondas, como se a cidade despertasse em descompasso.
Sentada em um banco de madeira da praça, Larissa segurava o celular com força, os dedos rígidos de tanto rolar a tela. A manchete ainda brilhava diante de seus olhos:
“Conspiração, silenciamento e uma morte esquecida: o retorno do Caso da Casa 92.”
O título estampado no site de maior alcance da cidade tinha a assinatura dela, em letras pequenas, mas visíveis. Pela primeira vez, seu nome estava onde sempre deveria ter estado: na frente.
Ela lia os comentários em cascata. Uns exaltavam sua coragem, outros questionavam suas fontes, alguns xingavam, chamando-a de “alarmista”. Mas todos liam. Todos falavam. E isso, para ela, já era vitória. O silêncio que antes sufocava agora se convertera em barulho.
Puxou o casaco mais para junto do corpo. E neste instante, ele se aproximou. Miguel trazia dois cafés fumegantes em copos de isopor. O vapor se misturava ao ar gelado, criando pequenas nuvens que desapareciam depressa.
— Pra esquentar os ossos — disse, entregando-lhe um.
Ela o pegou sem olhar, ainda fixada no celular.
— Parece que todo mundo tem algo a dizer agora. Engraçado, né? — murmurou, antes de dar um gole no café.
Miguel se sentou ao lado dela, ajeitando-se com um suspiro pesado.
— É. Engraçado. Principalmente porque quando importava, ninguém disse nada.
O silêncio entre eles se instalou como um velho conhecido, mas não era sufocante. Agora havia cumplicidade.
***
No dia anterior, a publicação da matéria tinha explodido como dinamite em meio a um terreno abandonado.
Na redação, colegas de Larissa reagiam com olhares atravessados. Alguns a parabenizaram de forma seca, outros evitaram comentar. Um antigo editor enviara uma mensagem curta, quase irônica: “Corajosa.” Ela sabia o que aquilo significava: reconhecimento a contragosto.
Outros repórteres, no entanto, a abordaram com perguntas ávidas, quase vorazes:
— Como conseguiu aquelas fitas?
— Garcez falou mesmo?
— Você acrescentou alguma coisa?
Ela os observava com frieza. Eram os mesmos que, anos antes, riram quando ela insistiu em investigar os restos da Casa 92. Os mesmos que chamaram sua pauta de “paranoia de arquivo morto”. Agora, todos queriam um pedaço da história.
Depois, o celular não parava de vibrar. Convites para programas de rádio, pedidos de entrevistas, leitores agradecendo. Havia até ameaças veladas, comentários anônimos sobre “gente grande não gostar de barulho”. Mas Larissa não se abalava. Pela primeira vez, a cidade inteira falava daquilo que sempre tentaram apagar.
Miguel, por sua vez, sentia o movimento em outro lugar. Pelos velhos contatos, soubera que a polícia entrara em modo de contenção. Reuniões emergenciais, notas oficiais prometendo “apuração rigorosa”, delegados jurando não ter relação com Garcez. O ex-chefe de polícia virara bode expiatório de um sistema que tentava salvar a própria pele.
E havia os vizinhos da Casa 92. A televisão exibira entrevistas com moradores antigos: uma senhora afirmando que sempre ouvira “um piano sozinho” nas madrugadas; um homem dizendo ter visto vultos no quintal abandonado. Agora, todos lembravam de algo.
Miguel resmungara quando viu a reportagem junto de Larissa.
— Na época ninguém viu nada. Agora todo mundo sabe de alguma coisa.
Larissa, sem erguer os olhos do computador, retrucou com sarcasmo:
— Bem-vindo ao jornalismo. A memória coletiva é como vento: muda de direção quando interessa.
***
Para Larissa, a repercussão era uma mistura de triunfo e veneno. Cada comentário de leitor lhe trazia um alívio secreto: “Eu estava certa. Eu não estava paranoica.” Mas ao mesmo tempo, lembrava de cada reunião em que foi silenciada, de cada riso abafado quando falava de Heitor Benevides, de cada pauta arquivada sem explicação.
Agora que a verdade emergia, ninguém pedia desculpas. Apenas se aproximavam para colher pedaços da glória.
Miguel carregava outro tipo de peso. O nome de Garcez surgindo nos noticiários era como uma lâmina fria na memória. Via-se jovem novamente, sentado na delegacia de paredes amareladas pelo cigarro barato, ouvindo a voz grave de Garcez decretar quais casos mereciam ser investigados e quais deveriam apodrecer em gavetas. Ele nunca tivera coragem de confrontá-lo. E agora, tempos depois, o homem finalmente caía, por suas mão e pela teimosia de Larissa.
Ainda assim, quando observava Larissa digitando madrugada adentro, com olheiras fundas e uma expressão obstinada, sentia algo renascer em si. Talvez esperança. Talvez orgulho. Talvez apenas o gosto de ainda estar vivo para ver alguém desafiar o silêncio.
***
Na Praça Tiradentes, o café aquecia as mãos de Larissa, mas não o frio no peito. Miguel a observava de soslaio, como quem estuda um enigma insolúvel.
— Ficou justo — ela disse, finalmente guardando o celular no bolso.
— Justo? — ele repetiu, arqueando uma sobrancelha.
— A história. Do jeito que precisava ser contada. Que a morte do professor Benevides não foi apenas um acidente.
Miguel soltou um riso baixo, quase irônico.
— E agora?
Larissa deu de ombros, exausta mas com um lampejo de sorriso.
— Agora a gente respira. E tenta descobrir o que fazer com o silêncio que ficou.
Ele hesitou, olhando-a por alguns segundos, e então murmurou:
— Só que esse silêncio me incomoda.
Ela virou o rosto, intrigada.
— Por quê?
Miguel baixou o tom, quase conspiratório:
— Porque ainda não sabemos quem mandou aquelas mensagens pra você. Ou quem tirou aquela foto na frente do seu prédio.
Larissa apertou o copo de café, sentindo o calor escapar.
— É, e nem o que Benevides realmente queria com aquelas partituras. Garcez falou de gente grande, mas nunca disse nomes.
— E Roberto… — Miguel acrescentou, com a voz pesada. — Ele acreditava demais. Mas em quê, exatamente? O que ele quase conseguiu?
Larissa encarou o nada por alguns segundos, até murmurar:
— Talvez a música nunca fosse só música realmente.
Os dois ficaram em silêncio. Mas não era o silêncio da paz. Era o silêncio cheio de perguntas que ainda pairavam.
Então Miguel, como quem faz uma promessa a si mesmo, completou:
— A gente ainda não terminou isso.
Ela riu de leve, encostando a cabeça no ombro dele. Não era um gesto ensaiado, nem grandioso. Era apenas natural.
— Você continua insuportável quando está certo — disse ela.
— E você continua teimosa quando está errada. — A resposta veio rápida, mas com um sorriso escondido na voz.
O sarcasmo, que tantas vezes servira de armadura, agora soava como ternura.
***
Larissa ergueu os olhos para o céu. As nuvens se abriam em pequenas frestas de azul. Ela respirou fundo, permitindo-se um instante de paz.
E então, no fundo de sua mente, algo retornou.
Um único acorde. Longo. Dissonante.
Não vinha de lugar nenhum. Não havia piano, rádio ou memória específica que o justificasse. Era apenas som, ou talvez lembrança. Ecoou dentro dela como se viesse de muito longe — ou de muito perto.
Larissa fechou os olhos, tentando afastar a sensação. O silêncio depois da música parecia mais denso, mais vivo do que deveria.
Abriu-os de novo, deixando a claridade da manhã invadir. Permitiu-se sorrir. Permitiu-se acreditar que o silêncio podia ser paz.
Mas no fundo, sabia: alguns mistérios nunca se resolvem completamente.
O silêncio que restava não era ausência. Era espaço aberto para o desconhecido.
FIM